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sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Gurgel "O fim de um sonho".


"Posso ir a falência por incapacidade, erro de mercado, mas me recuso a ir a falência por decreto" - João Augusto Gurgel

Gurgel

A história da Gurgel Motores se inicia em meados da década de sessenta, quando seu fundador, João Augusto Conrado do Amaral Gurgel, começa a produzir minicarros para crianças e karts.
Ipanema, o primeiro guerreiro Ipanema, o primeiro guerreiro
Em 1969, Gurgel, que era engenheiro formado pela USP, lança seu primeiro utilitário, o Ipanema.
Seguiram-se então os lançamentos do pequeno off-road X-10, e mais tarde do X-12, que utilizava um inédito sistema de construção, em que o chassi tubular era reforçado por componentes de fibra de vidro. O carro era equipado com o motor Volkswagen a ar e logo tornou-se um sucesso. Não dispunha de tração integral mas seu diferencial tinha um sistema exclusivo que permitia que uma das rodas fosse bloqueada (uma espécie de "diferencial blocante de acionamento manual"). Em 1981 é inaugurada a fábrica de Rio Claro.
Amaral Gurgel sempre foi cético com relação ao Pro-álcool, achava que terras férteis deveriam produzir alimentos e que não fazia sentido subsidiar álcool enquanto o Brasil exportava gasolina barata. Para ele, a energia do futuro era a elétrica, por isso a Gurgel Motores sempre pesquisou essa tecnologia, desde o princípio.
Ainda em 1981 a Gurgel Motores lançou o Itaipú, uma van elétrica. Para sua recarga bastava conectá-la a uma tomada doméstica, mas o desempenho era fraco (vazia não superava os 70 km/h) e as baterias (que representavam 1/4 do preço do carro) tinham vida útil curta. O carro acabou um fracasso de vendas e foi descontinuado no ano seguinte, mas a empresa continuou desenvolvendo protótipos elétricos, sem nunca chegar a um economicamente viável.
Gurgel Linha de Produção da Gurgel em 1980
Em 1986 são lançados o Tocantins (um X-12 melhorado) e o Carajás. Este último um sport utility de grande porte que se utilizava do motor VW 2.0 a água e tração traseira com o mesmo sistema de bloqueio de diferencial já empregado no X-12. Esses carros também foram bem em vendas e conquistaram consumidores fiéis entre órgãos públicos e polícias.
Mas foi entre 1984 e 1988 que a fábrica de Rio Claro desenvolveu o que talvez tenha sido o projeto mais ambicioso de uma empresa brasileira em todos os tempos. Esse projeto, denominado CENA (Carro Econômico Nacional), visava criar um carro totalmente projetado e manufaturado no Brasil, que fosse econômico, e tivesse ainda manutenção simples e barata. Esse carro deveria ser para a Gurgel o que o Modelo-T fora para a Ford e o que o Fusca fora para a VW.
No final de 1987 unidades pré-série foram ter às pistas de testes para definir os últimos acertos e em 1988 o carro rebatizado como BR-800 começou a ser produzido em série. O Governo Federal, num louvável gesto de apoio à indústria nacional, concedeu ao carrinho o direito de pagar apenas 5% de IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), enquanto os demais carros pagavam 25% ou mais dependendo da cilindrada.
O pequeno automóvel tinha a carroceria de fibra de vidro construída sobre um chassi tubular. O motor tinha dois cilindros contrapostos horizontalmente (boxer), era refrigerado a água, alimentado por carburador e movido a gasolina; desenvolvia 33cv e 6,2kgmf.
Gurgel 
Itaipu Elétrico, carro elétrico desenvolvido pela Gurgel
Um dos objetivos principais do projeto não foi atingido, o preço. Nos dois primeiros anos, todas as unidades eram destinadas a quem comprasse um lote de ações da Gurgel. Mesmo assim o sucesso foi imediato, quem conseguia o carro recendia-o com até 100% de ágio facilmente. É que a idéia de um carro totalmente brasileiro despertara um generalizado nacionalismo ufanista.
Em 1990, quando o carro começava a ser vendido sem o pacote compulsório de ações, quando parecia estar surgindo uma nova potência (tupiniquim) no mercado automobilístico, o Governo isenta todos os carros com motor menor que 1000cm³ do IPI (numa espécie de traição à Gurgel). Assim a Fiat lançou quase instantaneamente o Uno Mille, pelo mesmo preço do BR-800, mas que oferecia mais espaço e desempenho.
BR-Superimine, o ultimo carro Construído pela Gurgel
 BR-Superimine, o ultimo carro Construído pela Gurgel
Em 1991 o BR-800 passou por aperfeiçoamentos no desenho, interior e transmissão, passando a chamar-se BR-Supermini. Mas a empresa já não estava bem financeiramente.
Em 1992 a Gurgel Motores entrou em concordata, e os lançamentos do Chevette Junior e Gol 1000, em 1992 e 1993 respectivamente, ambos desfrutando da mesma vantagem fiscal do Uno Mille, deram o golpe de misericórdia na empresa brasileira.
Delta, o representante do que seria o maior vôo da Gurgel, se não fosse a traição do governo em prol das multinacionais. 
Delta, o representante do que seria o maior vôo da Gurgel, se não fosse a traição do governo em prol das multinacionais.
Trabalhando com quadro de funcionários reduzido desde o pedido de concordata, a Gurgel, com uma dívida superior a 3 milhões de dólares, vem a falir em 1995. O sonho acabou...
Gurgel foi uma fabricante de automóveis brasileira, desenvolvidos pelo engenheiro João Augusto Amaral Gurgel. Com a proposta de produzir veículos 100% nacionais, o empresário montou em 1969, na cidade de Rio Claro (interior do Estado de São Paulo), a fábrica de carros que levava o seu nome (originariamente a fábrica fora criada em São Paulo, na avenida do Cursino, Jardim da Saúde, tendo mudado para a cidade de Rio Claro nos fins dos anos 70). A montadora produziu mais de 40 mil veículos genuinamente brasileiros durante seus 25 anos de existência.
O registro da marca Gurgel encontrava-se expirado no INPI desde 2003. Em 2004, o empresário Paulo Emílio Freire Lemos adquiriu a marca pelo valor de R$ 850,00. A família Gurgel não foi consultada e por isso decidiu mover uma ação judicial contra o empresário.

História

Início

Gurgel foi fundada em 1º de setembro de 1969 pelo falecido engenheiro mecânico e eletricista João Augusto Conrado do Amaral Gurgel, que sempre sonhou com o carro genuinamente brasileiro. Gurgel começou produzindo karts e minicarros para crianças. O primeiro modelo de carro foi o bugue Ipanema e utilizava chassi, motor e suspensão Volkswagen.

Década de 1970: Bons negócios

Um jipe Gurgel Um jipe Gurgel
Em 1973 chegava ao mercado o Xavante, que deu início ao relativo sucesso da marca. Este foi o principal produto durante toda a evolução e a existência da fábrica. Este jipe seguia a tendência dos bugues de sua época e tinha como características diferenciais um chassi feito de plasteel (projeto patenteado pela Gurgel desde o início de sua aplicação, era uma união de plástico e aço, que aliava alta resistência a torção e difícil deformação), uma carroceria de plástico reforçado com fibra-de-vidro (FRP) e o selectraction. O Xavante logo agradou ao público, por sair da concepção tradicional dos bugues, e ao Exército brasileiro, que fez grande encomenda - havia uma versão militar especialmente produzida para este fim, o que deu impulso à produção.
Em 1975, houve a primeira reestilização do modelo. Além do jipe Xavante, existia o modelo X12, versão civil do jipe das forças armadas. Um ano antes, em 1974, a Gurgel apresentava o Itaipu, um projeto pioneiro de carro elétrico. Em 1976 chegava o X12 TR, de teto rígido, com o chassi Plasteel e uma garantia inédita de fábrica de 100.000 quilômetros.
Entre 1977 e 1978, a Gurgel foi o primeiro exportador na categoria veículos especiais e o segundo em produção e faturamento. Cerca 25% da produção seguia para fora do Brasil. Eram fabricados 10 carros por dia, sendo o X12 o principal produto da linha de montagem. A unidade de negócios era o Gurgel Trade Center, numa importante avenida da capital paulista. Havia um escritório executivo e um grande salão de exposição, além de um centro de apoio técnico aos revendedores.
Em 1979, toda a linha de produtos foi exposta no Salão do Automóvel de Genebra, na Suíça, onde o jipe brasileiro teve boa recepção. Ainda naquele ano foi lançado o furgão X15.
No final da década de 1970, a fábrica tinha uma área de 360 mil m2, dos quais 15 mil eram construídos. Contava com 272 empregados entre técnicos e engenheiros, que dispunham de assistência médica e transporte. Só era menor em número de funcionários do que a Puma, no que se referia a pequenos fabricantes..

Década de 1980: Estabilidade e endividamento

O sedan BR-800. 
O sedan BR-800.
Em 1980 a linha era composta de 10 modelos. Todos podiam ser fornecidos com motores a gasolina ou álcool, apesar de o engenheiro Gurgel combater muito o combustível vegetal. Ainda naquele ano, foi testado - depois de cinco anos de estudos -mais um veículo de tração elétrica, o Itaipu E400. Este furgão foi primeiramente vendido a empresas para testes. Depois da versão furgão, seriam lançados modelos picape, de cabines simples ou dupla, e em 1983 o Itaipu E400, para passageiros. Com a mesma carroceria foi lançado um modelo com motor Volkswagen "a ar" e dupla carburação, denominado G800. Em 1984, a Gurgel lançava o jipe Carajás, com versões TL (teto de lona), TR (teto rígido) e MM (militar), mas apenas a TR entrou em linha.
Outros modelos novos foram o X12 TR (teto rígido e versão mais barata do X12), X12 RM (teto rígido e meia capota), o X12 M (este de uso exclusivo das Forças Armadas do Brasil), o X15 TR, o G15 L, o XEF, cada qual com seus acessórios específicos.
Em 1986 o X12 passou a se chamar Tocantins, acompanhado de ligeira reforma estética.
Além dos utilitários, Gurgel sonhava com um minicarro econômico, barato e 100% brasileiro para os centros urbanos. No 7 de setembro de 1987 foi apresentado o protótipo Cena, acrônimo de "carro econômico nacional", um minicarro projetado para ser o mais barato do país. Os motores, de configuração única no mundo, eram como os VW 1.300 e 1.600 cortados ao meio: dois cilindros horizontais opostos, 650 ou 800 cm3 , mas refrigerados a água.
A potência seria de 26 ou 32 cv conforme a versão. Do protótipo se chegou ao BR-800, lançado oficialmente em 1988. O objetivo de projetar um carro com o preço final de US$ 3 mil não se concretizou, mas graças a um incentivo fiscal do governo brasileiro (que concedeu ao veículo o direito de pagar apenas 5% de (IPI), enquanto os demais carros pagavam 25% ou mais dependendo da cilindradas), o carro era vendido a um preço médio de US$ 7 mil - cerca de 30% mais barato que os compactos das montadoras transnacionais no Brasil. De início, a única forma de compra era a aquisição de ações da Gurgel Motores S/A, que teve a adesão de 8.000 pessoas. Sob uma campanha "Se Henry Ford o convidasse para ser seu sócio, você não aceitaria?", foram vendidos 10.000 lotes de ações. Cada comprador pagou os US$ 7.000 pelo carro e cerca de US$ 1.500 pelas ações, o que se constituiu um bom negócio para muitos - no final de 1989 havia ágio de 100% pelas mais de 1.000 unidades já produzidas.
Antevendo a crise que se instalaria na empresa, modelos como o X12 deixaram de ser fabricados no final da década. Endividada, a empresa recorreu a empréstimos junto ao governo federal, de José Sarney, que jamais pagaria.

Década de 1990: Falência

Em 1990 a Gurgel mostrava o Motomachine. Inicialmente, apenas os acionistas podiam comprar o carro.
O novo governo do Brasil, do presidente Fernando Collor de Melo, tomou medidas que prejudicaram a Gurgel. A primeira delas foi isentar todos os carros com motor menor que 1000cm3 do IPI - o que levou as grandes montadoras estrangeiras instaladas no país a lançar quase que instantaneamente carros com preços similares ao BR-800, mas com mais recursos. Outra medida do governo Collor foi liberar as importações de veículos. Mesmo pagando aliquota de 85%, o Lada Niva era mais barato que os jipes produzidos pela Gurgel.
Em janeiro de 1991, o 'BR-800 deixou de ser produzido, assim como todas as linhas de jipes da empresa. Terminava assim uma das duas fontes de recursos da Gurgel. Também naquele ano, os bancos estatais Banespa (do São Paulo) e BEC (do Ceará) concederam novos empréstimos (sem garantias) à Gurgel.
Tentando se manter viva no mercado, a Gurgel lançou em 1992 uma evolução do BR-800, o Supermini. O próximo projeto, batizado de Delta, seria um novo carro popular que usaria o mesmo motor Gurgel Enertron e custaria entre US$ 4000 e US$ 6000, mas não chegou a ser fabricado. A Gurgel chegou a adquirir algumas das máquinas-ferramenta que acabaram não sendo usadas.
Atolada em dívidas e enfraquecida no mercado pela concorrência das transnacionais, a Gurgel pediu concordata em junho de 1993. Em uma última tentativa de salvar a fábrica, em 1994, foi feito um pedido ao governo federal para um financiamento de US$ 20 milhões à empresa, mas este foi negado, e a fábrica encerrou suas atividades em 1994.

Anos seguintes

O registro da marca Gurgel encontrava-se expirado no INPI desde 2003. Em 2004, o empresário Paulo Emílio Freire Lemos adquiriu a marca pelo valor de R$ 850,00. A família Gurgel não foi consultada e por isso decidiu mover uma ação judicial contra o empresário.
Naquele mesmo ano, Emílio Freire Lemos lançou o Gurgel TA-01, um triciclo agrícola movido a diesel e nada tem a ver com a antiga fabrica de carros e trata-se de uma importadora que marcou o relançamento da marca Gurgel. Também passou a ser produzida a empilhadeira Gurgel FD-30 TJ.

Lista completa dos modelos produzidos

* BR-800 * BR-Van * Delta * FD-30 TJ * Supermini * Supercross * Cena * Xavante * X12 * X15 * G15 * Carajás * G800 * Itaipu * E400 * Ipanema * TA-01 * XEF * Motomachine

Livros

"Gurgel, um brasileiro de fibra", Lélis Caldeira, editora Alaúde.

Documentários

2004 "Sonhos Enferrujam Gurgel e o carro do Brasil" - Dirigido e produzido por alunos do curso de jornalismo da Universidade de São Paulo.

Os automóveis de Rio Claro

João Gurgel produziu ótimos fora-de-estrada por duas décadas, mas não teve sucesso em seu sonho de um carro popular 100% nacional 
João Gurgel produziu ótimos fora-de-estrada por duas décadas, mas não teve sucesso em seu sonho de um carro popular 100% nacional
A cidade de Rio Claro, no interior de São Paulo, já sediou uma importante indústria nacional de automóveis. Fabricou lá durante duas décadas utilitários, carros urbanos e até elétricos. Foi fundada em 1°. de setembro de 1969 pelo intrépido engenheiro mecânico e eletricista João Augusto Conrado do Amaral Gurgel, que sempre sonhou com o carro genuinamente brasileiro. Devido às exportações que sua empresa passou a fazer com o sucesso dos produtos, ele sempre dizia que sua fábrica não era uma multinacional, e sim "muitonacional". O capital era 100% brasileiro.
Este homem dinâmico e de grandes idéias sempre inovou, sempre foi original -- e quase tudo o que aplicou deu certo. Formou-se na Escola Politécnica de São Paulo em 1949 e, em 1953, no General Motors Institute nos Estados Unidos. Conta-se que, ao apresentar o projeto de um automóvel popular -- o Tião -- ao professor, teria ouvido: "Carro não se fabrica, Gurgel, se compra".
Começou fazendo minicarros para crianças, no caso réplicas de um Karmann-Ghia e de um Corvette. Eram muito fiéis, bem acabadas e comportavam duas crianças. Eram movidos por motores monocilíndricos. O primeiro modelo para adultos foi um bugue com linhas muito modernas e interessantes, com chassi, motor e suspensão Volkswagen. Chamava-se Ipanema. Gurgel sempre batizou seus carros com nomes bem brasileiros e homenageava nossas tribos de índios -- a fábrica de aviões Piper, dos EUA, utilizou o mesmo expediente durante décadas, com os seus "índios voadores" Cherokee, Apache, Comanche, Aztec e outros.
O pequeno jipe Xavante (aqui um X12 de 1983) servia com valentia no fora-de-estrada, mas também fez sucesso como uma opção aos bugues no lazer 
O pequeno jipe Xavante (aqui um X12 de 1983) servia com valentia no fora-de-estrada, mas também fez sucesso como uma opção aos bugues no lazer
Em 1973 chegava o Xavante, que daria início ao sucesso da marca. Seria seu principal produto durante toda a evolução e existência da fábrica. De início com a sigla X10, não era mais um bugue, mas um jipe que gostava de estradas ruins e não se importava com a meteorologia. Sobre o capô dianteiro era notável a presença do estepe. Sua distância do solo era grande, o pára-brisa rebatia para melhor sentir-se o vento e a capota era de lona.
Tinha linhas curvas, seguindo uma tendência dos bugues da época. Um par de pás afixadas nas portas, para cavar e sair de situações mais extremas, chamava a atenção. Este acessório inédito anunciava o propósito do veículo e o identificava logo. Foi incorporado à linha pela participação do Xavante em desfiles militares.
O jipe era equipado com a tradicional, simples e robusta mecânica Volkswagen refrigerada a ar, com motor e tração traseiros. O acesso ao motor nunca foi dos mais favoráveis: era feito por uma tampa estreita e não muito comprida. O chassi era uma união de plástico e aço (projeto patenteado pela Gurgel desde o início de sua aplicação, denominado Plasteel), que aliava alta resistência a torção e difícil deformação. A carroceria era em plástico reforçado com fibra-de-vidro (FRP). Conta-se que, na fábrica, existia um taco de beisebol para que os visitantes batessem forte sobre a carroceria para testar a resistência. Não amassava, mas logicamente o teste pouco comum era feito antes de o carro receber pintura.
Recurso interessante do X12, que supria em parte a ausência de tração 4x4, era o freio individual das rodas traseiras acionado por alavancas, que facilitava sair de atoleiros
 Recurso interessante do X12, que supria em parte a ausência de tração 4x4, era o freio individual das rodas traseiras acionado por alavancas, que facilitava sair de atoleiros
A carroceria e o chassi formavam um só bloco. Pelo emprego destes materiais a corrosão estava completamente banida. As rodas, as mesmas da Kombi, eram equipadas com pneus de uso misto. A suspensão, como no Fusca, era independente nas quatro rodas, em um conjunto muito robusto -- mas na traseira a mola era helicoidal, em vez da tradicional barra de torção. Para subir ou descer morros não havia grande dificuldade. Dificilmente nestas ocasiões ele raspava: a carroceria tinha ângulo de entrada de 63 graus e de saída de 41 graus.
Além do Plasteel, outro recurso interessante do Xavante era o Selectraction. Tratava-se de um sistema movido por alavancas, ao lado do freio de estacionamento, para frear uma das rodas traseiras. Era muito útil em atoleiros, pois freando uma das rodas que estivesse girando em falso a força era transmitida à outra -- característica de todo diferencial --, facilitando a saída do barro. Com este sistema o carro ficava mais leve e econômico do que se tivesse tração nas quatro rodas e a eficiência era quase tão boa quanto -- pelo menos era o que Gurgel costumava argumentar, talvez para esconder o fato de que nunca tivesse conseguido, ou mesmo tentasse, produzir uma transmissão 4x4.
O Xavante logo agradou ao público, por sair da concepção tradicional dos bugues, e ao Exército brasileiro, que fez grande encomenda. Havia uma versão militar especialmente produzida para este fim, o que deu ótimo impulso à produção. Na primeira reestilização, em 1975, as linhas da carroceria ficaram mais retas. O estepe agora ficava sob o capô, mas o ressalto neste anunciava sua presença. Sobre os pára-lamas dianteiros ficavam as lanternas de direção, idênticas às do Fusca.
Um dos últimos modelos da série, o Tocantins TR: teto rígido e melhorias em conforto e mecânica, mantendo as linhas básicas originais do fim dos anos 70 
Um dos últimos modelos da série, o Tocantins TR: teto rígido e melhorias em conforto e mecânica, mantendo as linhas básicas originais do fim dos anos 70
Além do X10, mais simples, existia o X12, versão civil do jipe das forças armadas. O motor era o mesmo 1,6-litro de um só carburador, que fornecia 49 cv e usava a relação de diferencial mais curta do Fusca 1300 (4,375:1 no lugar de 4,125:1). Atrás das portas havia uma pequena grade plástica para ventilação do motor. A velocidade final não chegava a empolgar: fazia no máximo 108 km/h e de 0 a 100 km/h levava penosos 38 s. Mas seu objetivo era mostrar serviço e desempenho com relativo conforto em caminhos difíceis, pouco apropriados a carros de passeio.
Sua estabilidade era crítica em ruas de asfalto ou paralelepípedo. Nas pistas, ruas e estradas era melhor não arriscar nas curvas. O jipe gostava mesmo de lama, terra, água, neve, praia, montanha e floresta, que eram seu hábitat natural. Era fácil de estacionar, de dirigir e de domar. Por causa de todo o conjunto muito robusto, era um veículo barulhento para o dia-a-dia. Seu escapamento não era original VW e havia dúvidas quanto a sua eficiência, além de produzir ruído exagerado.
Em 1974 a Gurgel apresentava um pioneiro projeto de carro elétrico. O Itaipu -- alusão à usina hidrelétrica -- era bastante interessante: ótima área envidraçada, quatro faróis quadrados, um limpador sobre o enorme pára-brisa, que tinha a mesma inclinação do capô dianteiro. Visto de lado, era um trapézio sobre rodas. Era um minicarro de uso exclusivamente urbano para duas pessoas, fácil de dirigir e manobrar, que usava baterias recarregáveis em qualquer tomada de luz, como um eletrodoméstico.
Em 1980 a linha contava com 10 modelos, incluindo diversas versões do X12 e do utilitário X15 (em segundo plano), que parecia um veículo militar com suas linhas retas
 Em 1980 a linha contava com 10 modelos, incluindo diversas versões do X12 e do utilitário X15 (em segundo plano), que parecia um veículo militar com suas linhas retas
Um dos modelos elétricos se chamaria CENA -- carro elétrico nacional --, nome que ressurgiria no projeto do BR-280/800, com o "e" representando "econômico". Mas os problemas de durabilidade e peso das baterias, consumo e autonomia são até hoje um desafio, inclusive nos países mais desenvolvidos. Infelizmente o projeto não vingou, mesmo depois de várias tentativas de seu criador para conseguir parcerias em financiamentos, incentivos e pesquisas. Mas deu origem a outros, anos depois.
Em 1976 chegava o X12 TR, de teto rígido. Suas linhas estavam mais retas e ainda transmitiam respeito; continuava um utilitário bastante rústico. Os faróis redondos agora estavam embutidos na carroceria e protegidos por pequena grade. Na frente destacava-se o guincho manual com cabo de 25 metros de extensão, por sistema de catraca, para situações fora-de-estrada.
As portas tinham dobradiças e na traseira, sobre a pequena tampa do motor, outro acessório interessante: baseado nos Jeeps da Segunda Guerra Mundial, um tanque de combustível sobressalente de 20 litros ou, como alguns gostavam de chamar, camburão. Era um dispositivo útil e bem-vindo para as aventuras fora-de-estrada. Na frente, o pequeno porta-malas abrigava o estepe e o tanque de combustível de 40 litros. Para as malas, havia quase nenhum espaço -- só se fossem lá dentro, junto com os passageiros. O painel era muito simples e continha o extremamente necessário.
O chassi Plasteel continuava como padrão e a fábrica oferecia uma garantia inédita de 100.000 quilômetros. Fato interessante é que todo Gurgel tinha carrocerias originais: o engenheiro nunca copiou nada em termos de estilo, mesmo lá de fora, coisa corriqueira hoje em dia entre fabricantes de veículos fora-de-estrada, seja grande ou pequeno construtor -- quantas réplicas do Jeep você conhece? Em 1979 toda a linha de produtos foi exposta no Salão do Automóvel de Genebra, na Suíça. Neste evento a propaganda do jipe nacional e o volume de vendas foram muito bons.

Variedade de oferta

Depois de cinco anos de estudo, outro veículo de tração elétrica, o Itaipu E400, ia para os primeiros testes em 1980. Tratava-se de um furgão com desenho moderno e agradável. Sua frente era curva e aerodinâmica, com amplo pára-brisa e pára-choque largo com faróis embutidos. Nas laterais havia somente os vidros das portas, com quebra-ventos; o resto era fechado.
O painel era equipado com velocímetro, voltímetro, amperímetro e uma luz-piloto que indicava quando a carga estava por acabar. As baterias eram muito grandes e pesadas, cada uma com 80 kg e 40 volts. O motor elétrico era um Villares de 8 kW (11 cv) e girava a 3.000 rpm máximas. Apesar da potência ínfima, os elétricos conseguem boa aceleração porque o torque é constante em toda a faixa útil de rotações. Tinha câmbio de quatro marchas, embreagem e transmissão.
Depois de tentar com um minicarro, em 1975, Gurgel adotou a tração elétrica no furgão Itaipu E400, mas as baterias eram pesadas demais e tinham pequena autonomia 
Depois de tentar com um minicarro, em 1975, Gurgel adotou a tração elétrica no furgão Itaipu E400, mas as baterias eram pesadas demais e tinham pequena autonomia
O consumo, se comparado a um carro a gasolina, seria de 90 km/l, mas a autonomia era pequena, de apenas 80 quilômetros. Para recarregar eram necessárias em média 7 horas numa tomada de 220 volts. Devido a este fator, era um veículo estritamente urbano. A velocidade máxima estava por volta de 80 km/h, em grande silêncio -- uma das grandes vantagens de um carro elétrico é não poluir com gases nem com barulho. Primeiramente foi vendido a empresas para testes.
Depois da versão furgão viriam o picape de cabines simples e dupla e o E400 para passageiros. O E400 CD (cabine dupla) era um misto de veículo de carga e passageiros, lançado em 1983. Com a mesma carroceria foi lançado um modelo com motor Volkswagen "a ar", com dupla carburação, que tinha a denominação G800. Trazia a mesma robustez e muito espaço interno para passageiros -- seria uma antevisão do Mercedes-Benz Classe A, projetado para ser elétrico mas que depois passou a motor de combustão interna?
Na versão CD havia um detalhe curioso: três portas, duas na direita e a outra na esquerda para o motorista. Do mesmo lado, atrás, vinha um enorme vidro lateral. Ganhava o passageiro que se sentasse deste lado, pois tinha ampla visibilidade. O G800 pesava 1.060 kg e podia carregar mais 1.100 -- um utilitário valente e robusto.
Em 1980 a linha era composta de 10 modelos. Todos podiam ser fornecidos com motores a gasolina ou álcool, apesar de o engenheiro Gurgel combater muito o combustível vegetal. O álcool era subsidiado pelo governo, o que tornava o preço final para o consumidor mais baixo que a gasolina -- única forma de estimular o uso de um combustível que, pelo menor poder calorífico, resulta em consumo cerca de 30% maior. Mas o engenheiro achava que seria mais coerente usar essas terras para plantar alimentos para a população do que para alimentar veículos. Mais tarde ele poria fim às versões a álcool na marca (ver adiante).
Faziam parte da linha o X12 TR com teto rígido, o jipe comum com capota de lona (que era a versão mais barata do X12), o simpático Caribe, a versão Bombeiro, o X12 RM (teto rígido e meia capota) e a versão X12 M, militar. Este, exclusivo para as Forças Armadas, já vinha na cor-padrão do Exército, com emblemas nas portas e acessórios específicos. O leque de opções era grande e dependia da versão e para que o carrinho ia ser utilizado. Por exemplo, havia a opção de filtro de ar para serviço pesado, que ficava na parte traseira à esquerda, sobre o motor. O "camburão" ficava à direita.
O projeto do Itaipu foi aproveitado 
O projeto do Itaipu foi aproveitado no G800, utilitário com versões furgão e picape de cabine simples e dupla
Numa outra faixa de preço havia o monovolume X15 TR de quatro portas, o picape cabine-dupla CD, a versão cabine-simples (CS), o cabine-simples com capota de lona e o bombeiro. As versões Bombeiro de ambos modelos eram equipadas com luzes giratórias sobre o teto. Outros acessórios específicos também já saíam de fábrica para estas versões.
O X15, lançado em 1979, era um furgão com estilo de gosto muito duvidoso. Parecia um veículo militar de assalto, um pequeno carro-forte. Logo teria versões picape de cabine simples e dupla. O furgão podia transportar até sete pessoas, ou duas e mais 500 kg de carga. Como os demais, usava a mecânica VW "a ar". Todos os vidros da carroceria, inclusive o pára-brisa, eram planos, sem nenhuma curvatura. Na frente muito inclinada, o pára-brisa era dividido em dois vidros, sendo que um deles, em frente ao motorista, ocupava 3/4 de toda a área frontal para a versão militar (na civil os vidros tinham a mesma largura). Também nesta havia o guincho, faróis protegidos por grade, pequenas pás afixadas nas portas e capota de lona.
Seu ângulo de entrada e saída para enfrentar rampas acentuadas era tão bom quanto o do X12. O chassi e a carroceria, de pequenas dimensões externas, mantinha a tecnologia Gurgel. Tinha um ar muito robusto, com 3,72 m de comprimento, 1,90 m de largura e a altura total de 1,88 m -- um tijolo sobre rodas. Os faróis eram embutidos no largo e ameaçador pára-choque preto.
Em 1981, como novidade bem-vinda, os freios dianteiros passaram a ser a disco no X12 e a suspensão dianteira estava mais robusta. Novos detalhes de acabamento também o deixaram mais "luxuoso". Para o X15 era lançada a versão Van-Guard. Atrás dos bancos dianteiros havia dois colchões com revestimento plástico estampado, que combinavam com pequenos armários embutidos. Cortinas nas janelas e até um ventilador completavam o ambiente descontraído.
Vocação militar: o retilíneo X15 foi utilizado pelo Exército, cliente da Gurgel por longa data também pelo pequeno X12 
Vocação militar: o retilíneo X15 foi utilizado pelo Exército, cliente da Gurgel por longa data também pelo pequeno X12
O carro tinha um visual hippie. Na parte externa, faixas triplas e grossas nas laterais e o estepe fixado na traseira com cobertura nos mesmos tons da carroceria. Tinha só duas portas e, nas laterais, um vidro basculante retangular grande. Ideal para quem curtia acampar e programas ecológicos. Nesta versão ele ficou menos sisudo.
Também foi lançado o G15 L, picape cabine-simples mais longo (3,92 m) derivado do X15, que podia transportar até uma tonelada de carga. O tanque de combustível era de 70 litros e podia receber outro de mesma capacidade para aumentar a autonomia (vigorava então o absurdo e ineficiente regime de postos fechados nos fins de semana). Além da versão padrão, havia a cabine-dupla de duas ou quatro portas e a furgão.
A valente empresa nacional crescia. A fábrica tinha uma área de 360 mil m2, dos quais 15 mil eram construídos. Contava com 272 empregados entre técnicos e engenheiros, que dispunham de assistência médica e transporte. Só era menor em número de funcionários do que a Puma, no que se referia a pequenos fabricantes.
Gurgel foi o primeiro exportador na categoria carros especiais em 1977 e 1978 e o segundo em produção e faturamento nestes dois anos -- 25% da produção seguiam para fora do Brasil. Eram fabricados 10 carros por dia, sendo o X12 o principal produto da linha de montagem. A unidade de negócios era o Gurgel Trade Center, numa importante avenida da capital paulista. Havia um escritório executivo e um grande salão de exposição, além de um centro de apoio técnico aos revendedores.
Além do sonho de um carro 100% brasileiro, Gurgel priorizava o uso da terra para alimentar pessoas, não veículos. Assim, certo dia decidiu não mais oferecer seus modelos -- como o X12 -- com motor a álcool
 Além do sonho de um carro 100% brasileiro, Gurgel priorizava o uso da terra para alimentar pessoas, não veículos. Assim, certo dia decidiu não mais oferecer seus modelos -- como o X12 -- com motor a álcool
No final de 1981 era desenvolvido o modelo Xef. Com duas portas e três volumes bem definidos, era um carro urbano bastante interessante. Apesar de não ser novidade, contava com três bancos dianteiros -- recurso pouco comum já aplicado no francês Matra Baghera, mas este era um esportivo. Três adultos de boa estatura acomodavam-se com dificuldade e o acesso era digno de contorcionistas. O espaço para bagagem era mínimo.
O desenho da carroceria era alegre e vistoso, baixo e pequeno. Media apenas 3,12 m de comprimento e pesava cerca de 680 kg. Como curiosidade, pára-brisa e vidro traseiro eram idênticos e portanto intercambiáveis, idéia provavelmente tirada do Skoda Octavia da década de 60. A visibilidade para a frente e para os lados era muito boa. As rodas copiavam o desenho dos Mercedes-Benz da época. Recebia a mecânica do VW Brasília, com dupla carburação, mas havia uma falsa grade preta entre os faróis retangulares. Infelizmente a aceitação no mercado, devido sobretudo ao preço, não foi boa e poucos Xefs foram produzidos.
Em 1982 o X12 normal seguia seu caminho na produção e nas estradas de terra, lama e areia do Brasil. Com a mesma carroceria mais reta da versão de teto rígido (TR), continuava com o pára-brisas dobrável e a capota de lona presa com botões de pressão. Os retrovisores externos e internos eram fixados na estrutura do pára-brisa. Tudo muito prático e simples.
Espaçoso e com recursos interessantes de engenharia, o Carajás adotava motor 1,8 do Santana, mas câmbio e embreagem ficavam na traseira 
Espaçoso e com recursos interessantes de engenharia, o Carajás adotava motor 1,8 do Santana, mas câmbio e embreagem ficavam na traseira
A carroceria agora recebia uma faixa branca que contornava a porta e o pára-lama. As portas eram de plástico reforçado. O pequeno e simpático jipe recebia opcionalmente rodas esportivas, brancas e bonitas, de 14 pol (pneus 7,00 x 14) no lugar das originais de 15 pol. Na versão Caribe a capota e os bancos eram listrados com cores vivas e alegres, que combinavam com a carroceria no mesmo tom, e as rodas brancas eram de série.
Em 1983 a versão de teto rígido do X12 recebia uma clarabóia no teto, bastante útil para refrigerar a cabine. Um defeito na versão TR que jamais foi sanado era que sua porta era presa ao pára-lama dianteiro por dobradiças. Qualquer um armado com uma chave Phillips podia desmontar a porta, entrar no jipe para roubar objetos ou mesmo dar uma voltinha com ele.
No modelo 1985 as novidades externas eram nova grade, pára-choques e lanternas traseiras. Por dentro o painel e o volante também eram mais modernos. Na versão de luxo, bancos com encosto alto mais confortáveis e a clarabóia.
Na parte mecânica vinha como novidade a ignição eletrônica, nova suspensão traseira e diferencial com outra relação, que o deixou mais veloz em rodovias, econômico e silencioso. No mesmo ano a VW havia introduzido no Fusca a relação 3,875:1, parte do pacote que objetivava redução de 5% no consumo médio de combustível. Como a Gurgel dependia do fornecimento da VW, a modificação foi estendida ao X12.
O Carajás adotava carroceria em plástico reforçado com fibra-de-vidro e recursos como os difusores de ar no teto
 O Carajás adotava carroceria em plástico reforçado com fibra-de-vidro e recursos como os difusores de ar no teto
Nos primeiros modelos do jipão, em 1984, pára-choques e teto eram pretos, o que -- ao lado do estepe montado sobre o capô -- lhe conferia aparência robusta e agressiva 
Nos primeiros modelos do jipão, em 1984, pára-choques e teto eram pretos, o que -- ao lado do estepe montado sobre o capô -- lhe conferia aparência robusta e agressiva

Carajás, o jipão

No ano anterior, a Gurgel lançava o jipe Carajás, outro nome indígena. As versões eram TL (teto de lona), TR (teto rígido) e MM (militar). Versões especiais ambulância e furgão também existiram. Um detalhe que chamava logo a atenção era o grande estepe sobre o alto capô dianteiro, solução inspirada nos Land Rovers que prejudicava a visibilidade frontal. Braços com músculos bem desenvolvidos eram indicados para abri-lo na hora de alguma manutenção. De frente era notável a grade preta com quatro faróis retangulares, iguais aos do Passat. Opcionalmente podia vir com o guincho.
Era um jipão na melhor definição. Chamava a atenção por onde passasse. Tinha duas portas laterais e uma traseira, com abertura meio a meio. Sobre o teto, uma clarabóia para ventilar a cabine. Dentro havia um forro duplo do teto, com cinco difusores de ar, dois para os passageiros da frente e três para os de trás -- e funcionava bem. Sobre o teto, como opcional, era oferecido um enorme bagageiro.
A carroceria, em plástico reforçado com fibra-de-vidro, tinha sempre cor preto-fosco no teto. O detalhe podia mascarar sua altura, mas concorria para aquecer o interior. Os bancos dianteiros, com encosto para cabeça, corriam sobre trilhos e facilitavam a entrada de passageiros atrás. A posição de dirigir era boa só para as pessoas mais altas.
O chassi Plasteel também estava presente, junto com o sistema Selectraction. O motor dianteiro de 1,8 litro e 85 cv, refrigerado a água, era o mesmo do Santana e podia ser a álcool ou a gasolina. Depois veio a versão com motor diesel de 1,6 litro e 50 cv, também refrigerado a água, usado na Kombi. Um detalhe mecânico interessante era o TTS.
Componentes VW estavam por toda a parte, como as lanternas traseiras de Kombi, faróis de Passat e o ótimo volante  
Componentes VW estavam por toda a parte, como as lanternas traseiras de Kombi, faróis de Passat e o ótimo volante "4 bolas" do Gol GTS. No console, atrás da alavanca de câmbio, as do sistema Selectraction
Para transmitir a força do motor para as rodas traseiras, era usado o Tork Tube System, um tubo de aço, com uma árvore de transmissão de aço em seu interior, que interligava o motor dianteiro ao conjunto traseiro de embreagem, câmbio, diferencial e semi-árvores. Uma ótima solução, encontrada pelo fato de o Carajás usar quase todo o conjunto mecânico do Santana, que é de tração dianteira. A caixa de mudanças, entretanto, era de Volkswagen "a ar".
O sistema era novidade no país, baseado num transeixo, ou transmissão e diferencial juntos, instalados na traseira de um veículo de motor dianteiro. Mas mostrou-se frágil, pois era muita potência do motor 1,8-litro transmitida para o conjunto traseiro previsto para motores 1,6 refrigerado a ar. Além disso, os sincronizadores do câmbio não eram eficientes o bastante para arcar com o trabalho adicional imposto pela árvore de transmissão solidária ao volante do motor e a maior inércia resultante, já que a embreagem ficava na traseira.
A suspensão do Carajás era independente nas quatro rodas. Na frente era utilizado o conjunto de eixo dianteiro da Kombi, enquanto na traseira a disposição era de braço semiarrastado com mola helicoidal. Apesar das dimensões e do peso do carro, era confortável, ótimo de curva, de rodar macio e tranqüilo no asfalto ou em terrenos difíceis. Sua capacidade de carga era de 750 kg.
Em 1988 eram apresentadas as versões VIP e LE do Carajás. As mudanças eram na porta traseira, agora numa peça só; nas maçanetas, capô e grade frontal, que passava a fazer parte da carroceria. Na VIP as rodas eram cromadas, os vidros fumê, a pintura metálica acrílica e os bancos tinham melhor revestimento. Mas o Carajás era caro para o público e não alcançou o sucesso esperado.
A aptidão do X12 -- ou Tocantins -- ao lazer ficava evidente nesta descontraída versão Caribe, aliás um dos mais de 40 países que importaram veículos da Gurgel 
A aptidão do X12 -- ou Tocantins -- ao lazer ficava evidente nesta descontraída versão Caribe, aliás um dos mais de 40 países que importaram veículos da Gurgel
O nome do X12 havia sido trocado para Tocantins, acompanhado de ligeira reforma estética. Tinha linhas mais modernas, mas ainda lembrando bem suas origens; a falsa grade ganhava um desenho tipo "caixa de ovos". Devido às exportações para o Caribe, ele atrapalhou e encerrou a produção do VW 181, utilitário de conceito similar feito pela filial mexicana da Volkswagen. As relações com a fábrica alemã, que eram ótimas, foram abaladas. E o próprio Gurgel não queria ficar atrelado à VW a vida toda.
Ele queria voar mais alto -- e quase conseguiu.

Os minicarros

Além dos utilitários, Gurgel sonhava com um minicarro econômico, barato e 100% brasileiro para os centros urbanos. Em 7 de setembro de 1987 -- segundo ele, dia da independência tecnológica brasileira -- apresentou o projeto Cena, de Carro Econômico Nacional, ou Gurgel 280. Primeiro minicarro da empresa e projetado para ser o mais barato do país, era bem pequeno e de aparência frágil. Os motores, de configuração única no mundo, eram como os VW 1.300 e 1.600 cortados ao meio: dois cilindros horizontais opostos, 650 ou 800 cm3 -- mas refrigerados a água. A potência seria de 26 ou 32 cv, conforme a versão.
Gurgel 
"Se Henry Ford o convidasse para ser seu sócio, você não aceitaria?" Com essa proposta tentadora, Gurgel vendeu 10.000 lotes de ações para viabilizar a fabricação do BR-800, que começou como Projeto CENA -- o carro econômico nacional
O carro seria lançado em opções 280 S, de sedã, e 280 M, de múltiplo, com capota removível -- restavam, porém, as molduras das portas e vidros laterais, bem como uma barra estrutural do teto. Solução interessante era o porta-luvas, uma maleta executiva que podia ser removida. Com a evolução do projeto, o motor menor foi abandonado e a cilindrada fixada em 0,8 litro, originando o nome BR-800. O motor fundido em liga de alumínio-silício era batizado como Enertron e projetado pela própria empresa.
O avanço de ignição era controlado por um microprocessador (garantido durante cinco anos) e não havia necessidade de distribuidor, pois o disparo era simultâneo nos dois cilindros, idéia aproveitada dos motores Citroën de disposição semelhante. O sistema de ignição era outra patente da Gurgel. A velocidade máxima era de 110 km/h e, com quatro marchas e tração traseira, atingia 100 km/h em cerca de 32 s.
Tanta lerdeza resultava da teimosia de Gurgel. O eixo traseiro rígido era o Dana 26 de Chevette, com o conjunto coroa-pinhão de relação 4,10:1 do picape Chevy 500. Era óbvio ser longo demais para o motor com metade da cilindrada do Chevrolet, mas o engenheiro não dava ouvido aos conselhos de sua equipe técnica no sentido de adotar a relação 4,89:1, disponível no fornecedor. Ele teimosamente insistia na questão de durabilidade -- pelas baixas rotações em velocidades de viagem --, não se importando com desempenho, algo de que os consumidores não abrem mão tão facilmente.
Espartano no projeto e nos detalhes, o BR-800 inovava em recursos como a ignição sem distribuidor, mas o câmbio era longo demais para bom desempenho
 Espartano no projeto e nos detalhes, o BR-800 inovava em recursos como a ignição sem distribuidor, mas o câmbio era longo demais para bom desempenho
Quem teve a oportunidade de avaliar o BR-800 com diferencial mais curto se surpreendia com a mudança de caráter, em que a agilidade nas acelerações e retomadas era o ponto marcante. E não podia ser diferente, se for levado em conta que o Fusca 1200 desenvolvia apenas 30 cv e sempre agradou à maioria.
O pequeno motor reunia alguns aspectos notáveis. Por exemplo, podia ser levado a praticamente 6.000 rpm sem flutuação de válvula (fechamento incompleto devido à velocidade excessiva), o que o motor VW não tolerava, mal passando de 5.000 rpm. A refrigeração a água com ventilador elétrico funcionava muito bem.
Gurgel, sempre querendo incorporar avanços, idealizou o motor sem correia trapezoidal para acionar acessórios, como o alternador, visando facilidade de manutenção, preocupação nada desprezível. Para isso, o alternador era acoplado diretamente ao comando de válvulas. Só que devido à rotação do comando ser metade da do motor, o alternador não desenvolvia potência suficiente em várias condições de uso, como todos os acessórios ligados ao dirigir moderadamente.
O resultado era a descarga da bateria, uma inconveniência e tanto para o motorista. Assim, a fábrica não demorou para voltar atrás e modificar a montagem do alternador, que passou a receber movimento do motor pela maneira tradicional de polias e correia trapezoidal, e com redução apropriada (cerca de 2:1), resolvendo definitivamente o problema.
O vidro traseiro dava acesso ao porta-malas e o compartimento do estepe ficava atrás da placaO vidro traseiro dava acesso ao porta-malas e o compartimento do estepe ficava atrás da placa 
O "esqueleto" do BR-800, um chassi tubular de aço que recebia a carroceria plástica. O vidro traseiro dava acesso ao porta-malas e o compartimento do estepe ficava atrás da placa
O BR podia transportar quatro passageiros com relativo conforto e 200 kg de carga. Pesava 650 kg, tinha duas portas e vidros corrediços -- o que prejudicava a ventilação da cabine. Na tentativa de sanar o problema a fábrica instalaria, nos modelos 1991, uma clarabóia de vidro no teto, bem próximo ao pára-brisa, a que chamava de "ventilação zenital".
Para guardar objetos no pequeno porta-malas, abria-se o vidro traseiro basculante, que servia de porta -- mas o acesso não era dos mais cômodos e a fechadura quebrava facilmente, pois não suportava as vibrações. Ainda assim era melhor do que a solução original de vidro traseiro fixo, em que era preciso acessar aquele compartimento por dentro do carro, como no Fusca. Por outro lado, o estepe tinha acesso por fora, em uma tampa traseira, muito prático.
Lançado em 1988, foi produzido até 1991. De início, a única forma de compra era a aquisição de ações da Gurgel S/A, que teve a adesão de 8.000 pessoas. Sob uma campanha convidativa -- "Se Henry Ford o convidasse para ser seu sócio, você não aceitaria?" --, foram vendidos 10.000 lotes de ações. Cada comprador pagou US$ 3.000 pelo carro e cerca de US$ 1.500 pelas ações, o que se constituiu bom negócio para muitos -- no final de 1989 havia ágio de 100% pelas mais de 1.000 unidades já produzidas.
Apesar de beneficiado por uma redução de impostos, cuja classificação de veículos enquadráveis praticamente o descrevia, o BR-800 não fez sucesso por muito tempo. No início dos anos 90 a empresa já não ia tão bem; começava a ir atrás de empréstimos altíssimos para tocar novos investimentos para projetos. Em 1990, o surgimento do Uno Mille -- seguido por outros modelos de um litro, bem maiores e mais rápidos que o pequeno Gurgel -- criou incômoda concorrência, pois custavam quase o mesmo.
O BR evoluiu para Supermíni, um compacto de linhas agradáveis e melhor acabamento -- mas a situação da Gurgel já não era boa no início dos anos 90 
O BR evoluiu para Supermíni, um compacto de linhas agradáveis e melhor acabamento -- mas a situação da Gurgel já não era boa no início dos anos 90
Uma evolução, o Supermíni, veio em 1992. Tinha um estilo muito próprio e moderno. Media 3,19 m de comprimento, sendo ainda o menor carro fabricado aqui. Estacionar era com ele mesmo, devido à pequena distância entre eixos (1,90 m) e uma direção leve. Tinha faróis quadrados, grade na mesma cor do carro, duas portas, dois volumes e boa área envidraçada. As linhas eram mais equilibradas que em seu antecessor.
A carroceria era em plástico FRP e tinha garantia de 100 mil quilômetros, alta resistência a impactos e, como tradição da fábrica, estava livre da corrosão. Era montada sobre um chassi de aço muito bem projetado e seguro, bem resistente à torção. A suspensão traseira, com meias-lâminas longitudinais e molas helicoidais, era mais macia que a do BR e permite um maior entreeixos. Os pára-choques dianteiro e traseiro, assim como a lateral inferior, vinham na cor prata.
O Supermíni usava o mesmo motor bicilíndrico, só que um pouco mais potente. Todo o conjunto motriz tinha garantia de fábrica de 30 mil quilômetros. Os vidros dianteiros não eram mais corrediços nem tinham quebra-ventos, mas nos primeiros modelos era comum seu deslocamento das respectivas guias. Para sanar o problema, a fábrica passou a enviar um kit que adaptava um quebra-vento fixo e um vidro menor. Havia agora uma verdadeira tampa de porta-malas e o banco traseiro bipartido possibilitava o aumento de sua capacidade.
Rebatizado Tocantins em homenagem a mais uma tribo indígena, o X12 resistiu até a chegada dos jipes importados, há cerca de dez anos
 Rebatizado Tocantins em homenagem a mais uma tribo indígena, o X12 resistiu até a chegada dos jipes importados, há cerca de dez anos
O consumo, apesar do baixo peso e da potência reduzida, não era extraordinário. Fazia 14 km/l na cidade e, a uma velocidade constante de 80 km/h, até 19 km/l em quarta marcha. Como destaques tinha motor com suspensão pendular, com coxim em posição elevada.
A suspensão dianteira já não era mais a Springshock dos primeiros BR-800 -- mola e amortecedor combinados, fabricados na própria Gurgel, que apresentavam enorme deficiência --, mas uma disposição convencional de braços transversais superpostos com mola helicoidal. A versão SL trazia como equipamentos de série conta-giros, antena de teto, faróis com lâmpadas halógenas e rádio/toca-fitas. Até junho de 1992, 1.500 unidades haviam sido vendidas do Supermíni. Os modelos 1993, os últimos entregues aos concessionários, tinham uma reestilização na traseira em que as lanternas davam lugar a modelos horizontais, iguais às do Ford Pampa.
Ainda em 1990 a Gurgel mostrava o Motomachine, veículo bastante interessante. Como o próprio nome sugere, era uma motocicleta sobre quatro rodas. Todo em tubos, parecia um carrinho de ficção científica. Acomodava dois passageiros, usava o mesmo motor do Supermíni e outras peças, sendo muito parecido com ele de frente. Portas e teto não tinham coberturas. Era um carro de uso bem restrito, feito para a curtição ou o transporte básico nos grandes centros.
Outra aposta de João Gurgel foi um carro ainda menor, o Motomachine. Depois dele viria o Delta, fabricado no Ceará, que nunca chegou às ruas
 Outra aposta de João Gurgel foi um carro ainda menor, o Motomachine. Depois dele viria o Delta, fabricado no Ceará, que nunca chegou às ruas
Poucas unidades circulam e são dignas de apreciação e curiosidade. O próximo projeto, batizado de Delta, teria chassi de alumínio, motor desenvolvido pela Lotus inglesa e carroceria moldada na Karmann-Ghia. Seria fabricado em Fortaleza, Ceará, mas não chegou às ruas. Gurgel chegou a adquirir todas as máquinas-ferramenta do transeixo do Citroën 2CV, que acabaram não sendo usadas.
Atolada em dívidas e combalida no mercado pela concorrência das multinacionais, a Gurgel pediu concordata em junho de 1993 e acabou fechando as portas no final de 1994. Sem dúvida o grande engenheiro, revolucionário e teimoso João Gurgel -- hoje com 75 anos -- deixou seu legado na indústria nacional. Foi um homem à frente do seu tempo, corajoso e patriota. Infelizmente, as enormes dívidas contraídas, as importações abertas no país e a inevitável globalização puseram fim a seus projetos e a seus sonhos.

O sonho não acabou

O sonho de Gurgel era ser fabricante de automóveis. Mais do que isso: um fabricante nacional de automóveis. Na época em que nasceu, a General Motors estava chegando ao Brasil; a Ford, fazia pouco que estava aqui. Estava em andamento a colonização industrial.
Foi nesse ambiente que o menino João Augusto cresceu: carros vinham "de fora" ou eram montados a partir de peças e componentes importados, o que hoje se entende por CKD, sigla de completamente desmontado na língua inglesa.
Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial em setembro de 1939, logo cessariam as importações de automóveis, em nome do esforço de guerra dos aliados contra o expansionismo alemão. Gurgel era adolescente, mas com idade suficiente para perceber o absurdo que era um país quase continente como o Brasil ficar sem locomoção devido a fatores externos. Foi nesse momento que acendeu nele a chama da idéia de fabricar automóveis.
O resto da história de João Augusto Conrado do Amaral Gurgel é conhecido, que, inclusive, foi contado nas páginas anteriores. Ele quase chegou lá, tendo inclusive realizado o mais difícil numa fábrica de automóveis: produzir o motor.
O que fica são perguntas: por que o Brasil não possui indústria automobilística própria, com empresas e marcas nacionais, como ocorre em inúmeras nações, das mais ricas e opulentas às menos expressivas?
O que dizer do Japão, da Coréia do Sul e da Malásia, no outro lado do mundo, hoje com marcas próprias, muitas das quais notáveis, a pura expressão da tecnologia? Seriam seus povos seres superiores, dotados de inteligência e capacidade de trabalho várias vezes superiores ao nosso? É claro que não.
Reunimos todas as condições para termos nossa própria indústria automobilística -- verdadeira, brasileira, e não os "transplantes" que aí estão e não param de chegar. Temos tecnologia mais do que suficiente para projetar e fabricar qualquer tipo de veículo. Se assim não fosse, a Embraer não seria o que é hoje, disputando ombro a ombro o mercado de aviação regional com poderosos e tradicionais grupos industriais -- e vencendo.
Se assim não fosse, não teríamos essa vasta aplicação de tecnologia de informação que faz do Brasil um destaque entre todas as nações, como a votação eletrônica e o ajuste anual do imposto de renda pela Internet. Recentemente vimos o fiasco que foi a apuração das eleições presidenciais no país mais poderoso do planeta.
A única e plausível explicação é letargia, pura e simples. Qualquer empresa ou grupo industrial que deseje fabricar de automóveis -- partindo do zero, como se diz -- terá aqui todas as condições para fazer do empreendimento um sucesso. Em qualquer mercado. Sem medo ou vergonha. Querer é o que basta.
Não, o sonho de Gurgel não acabou. Pode ser que se tenha sublimado em asas de jatos regionais, mas continua a vagar pelas nossas mentes.
Gurgel 
Linha de montagem do BR 800 em 1988.
"O mundo da publicidade constantemente pesquisa quais marcas o consumidor lembra de imediato, sem pestanejar. Entre marcas de refrigerantes, celulares, eletrodomésticos, pergunte a uma pessoa que marca de carro nacional vem à sua mente. Certamente vai se lembrar do nome Gurgel.
É certo que ainda roda pelas ruas das cidades brasileiras significativo número de veículos saídos da linha de montagem da Gurgel. Porém, o intrigante é que, embora seja um nome facilmente lembrado, há muito deixou-se de fabricar os utilitários inovadores e econômicos.
Desde 1994 não se produz mais um automóvel que leva essa marca. E por que o brasileiro ainda se lembra fortemente deste nome? Sem dúvida nenhuma porque João Augusto Conrado do Amaral Gurgel se inscreveu, com sua luta, determinação e garra no seleto grupo de brasileiros que temperaram o caráter não apenas na forja dos sonhos que sonharam, mas nas obras que concretizaram.
O irrequieto criador do Ipanema, BR-800, X-12, Carajás, Supermini, não apenas sonhou, mas empenhou palavra, honra, nome e toda sua garra em tornar realidade a obra concebida, em fazê-la nascer e frutificar.
Como na leitura de Dom Quixote, aqui também o leitor se coloca ao lado deste intrépido cavaleiro, tão logo inicia a leitura de sua saga. Infelizmente, não são de vento os moinhos que derrubaram os sonhos de Gurgel, mas de descasos governamentais e empresariais.
Essa história lírica e comovente, como comoventes e líricas são as vidas dos quixotes visionários, é contada às vezes com o tom bem humorado, às vezes com pinceladas de sonhos a serem concretizados, às vezes com o amargor da decepção em relação aos governantes e empresários que negaram apoio."

História

A cidade de Rio Claro, no interior de São Paulo, já sediou uma importante indústria nacional de automóveis, que em 25 anos produziu utilitários, carros urbanos e até elétricos. Foi fundada em 1º de setembro de 1969 pelo engenheiro mecânico e eletricista João Augusto Conrado do Amaral Gurgel, que sempre sonhou com o carro genuinamente brasileiro. Devido às exportações que sua empresa passou a fazer com o sucesso dos produtos, ele sempre dizia que sua fábrica não era uma multinacional, e sim "muitonacional". O capital era 100% brasileiro. Este homem dinâmico e de grandes idéias formou-se na Escola Politécnica de São Paulo em 1949 e, em 1953, no General Motors Institute nos Estados Unidos. Conta-se que, ao apresentar o projeto de um automóvel popular, o Tião, ao professor, teria ouvido: "Isto e coisa para multinacionais. Carro não se fabrica, Gurgel, se compra".
Gurgel começou produzindo karts e minicarros para crianças. Em 1969 fundou a Gurgel Veículos, seu primeiro modelo foi um bugue com linhas muito modernas e interessantes. Chamava-se Ipanema e utilizava chassi, motor e suspensão Volkswagen. Gurgel sempre batizou seus carros com nomes bem brasileiros e homenageava nossas tribos de índios.
Em 1973 chegava o Xavante, que deu início ao sucesso da marca. Este foi seu principal produto durante toda a evolução e existência da fábrica. De início com a sigla X10, era um jipe que gostava de estradas ruins e não se importava com a meteorologia. Sobre o capô dianteiro era notável a presença do estepe. Sua distância do solo era grande, o pára-brisa rebatia para melhor sentir o vento e a capota era de lona. Tinha linhas curvas, seguindo uma tendência dos bugues da época. Um par de pás afixadas nas portas chamava a atenção e logo anunciava o propósito do veículo.
O jipe era equipado com a tradicional, simples e robusta mecânica Volkswagen refrigerada a ar, com motor e tração traseiros. O acesso ao motor nunca foi dos mais favoráveis: era feito por uma tampa estreita e não muito comprida. O chassi era uma união de plástico e aço (projeto patenteado pela Gurgel desde o início de sua aplicação, denominado Plasteel), que aliava alta resistência a torção e difícil deformação. A carroceria era em plástico reforçado com fibra-de-vidro (FRP). Conta-se que, na fábrica, existia um taco de beisebol para que os visitantes batessem forte sobre a carroceria para testar a resistência. Não amassava, mas logicamente o teste pouco comum era feito antes de o carro receber pintura. Pelo emprego destes materiais a corrosão estava completamente banida. A carroceria e o chassi formavam um só bloco. As rodas, as mesmas da Kombi, eram equipadas com pneus de uso misto. A suspensão, como no Fusca, era independente nas quatro rodas, em um conjunto muito robusto, mas na traseira a mola era helicoidal, em vez da tradicional barra de torção. Para subir ou descer morros não havia grande dificuldade. A carroceria tinha ângulo de entrada de 63 graus e 41 graus de saída.
Além do Plasteel, outro recurso interessante do Xavante era o Selectraction. Tratava-se de um sistema movido por alavancas, ao lado do freio de estacionamento, para frear uma das rodas traseiras. Era muito útil em atoleiros, pois freando uma das rodas que estivesse girando em falso - característica de todo diferencial - a força era transmitida à outra, facilitando a saída do barro. Com este sistema o carro ficava mais leve e econômico do que se tivesse tração nas quatro rodas e a eficiência era quase tão boa quanto.
O Xavante logo agradou ao público, por sair da concepção tradicional dos bugues, e ao Exército brasileiro, que fez grande encomenda. Havia uma versão militar especialmente produzida para este fim, o que deu ótimo impulso à produção. Na primeira reestilização, em 1975, as linhas da carroceria ficaram mais retas. O estepe agora ficava sob o capô, mas o ressalto neste anunciava sua presença. Sobre os pára-lamas dianteiros ficavam as lanternas de direção, idênticas às do Fusca.
Além do X10, mais simples, existia o X12, versão civil do jipe das forças armadas. O motor era o mesmo 1,6-litro de um só carburador, que fornecia 49 cv e usava a relação de diferencial mais curta do Fusca 1300 (4,375:1 no lugar de 4,125:1). Atrás das portas havia uma pequena grade plástica para ventilação do motor. A velocidade final não chegava a empolgar: fazia no máximo 108 km/h e de 0 a 100 km/h levava penosos 38 s. Mas seu objetivo era mostrar serviço e desempenho com relativo conforto em caminhos difíceis, pouco apropriados a carros de passeio. Sua estabilidade era crítica em ruas de asfalto ou paralelepípedo. Nas pistas, ruas e estradas era melhor não arriscar nas curvas. O jipe gostava mesmo de lama, terra, água, neve, praia, montanha e floresta, que eram seu hábitat natural. Era fácil de estacionar, de dirigir e de domar. Por causa de todo o conjunto muito robusto, era um veículo barulhento para o dia-a-dia.
Em 1974 a Gurgel apresentava um pioneiro projeto de carro elétrico. O Itaipu, alusão à usina hidrelétrica, era bastante interessante: ótima área envidraçada, quatro faróis quadrados e um limpador sobre o enorme pára-brisa, que tinha a mesma inclinação do capô traseiro. Visto de lado, era um trapézio sobre rodas. Era um minicarro de uso exclusivamente urbano para duas pessoas, fácil de dirigir e manobrar, que usava baterias recarregáveis em qualquer tomada de luz, como um eletrodoméstico.
Ele teria tudo para dar certo se não fosse os problemas a com durabilidade, capacidade e peso das baterias, o que até hoje ainda é um desafio. Um dos modelos elétricos se chamaria CENA, carro elétrico nacional, nome que ressurgiria no projeto do BR-280/800, com o "E" representando econômico".
Em 1976 chegava o X12 TR, de teto rígido. Suas linhas estavam mais retas e ainda transmitiam respeito; continuava um utilitário bastante rústico. Os faróis redondos agora estavam embutidos na carroceria e protegidos por pequena grade. Na frente destacava-se o guincho manual com cabo de 25 metros de extensão, por sistema de catraca, para situações fora-de-estrada. Na traseira, sobre a pequena tampa do motor, havia um tanque de combustível sobressalente de 20 litros ou, como alguns gostavam de chamar, camburão. Era um dispositivo útil e bem-vindo para as aventuras fora-de-estrada. Na frente, o pequeno porta-malas abrigava o estepe e o tanque de combustível de 40 litros. Para as malas havia quase nenhum espaço, e o painel, muito simples, continha o estritamente necessário.
O chassi Plasteel continuava como padrão, e a fábrica oferecia uma garantia inédita de 100.000 quilômetros. Fato interessante é que todo Gurgel tinha carrocerias originais: o engenheiro nunca copiou nada em termos de estilo, coisa corriqueira hoje em dia entre fabricantes de veículos fora-de-estrada. Em 1979 toda a linha de produtos foi exposta no Salão do Automóvel de Genebra, na Suíça. Neste evento a propaganda do jipe nacional e o volume de vendas foram muito bons.
Carajás
Em 1980, depois de cinco anos de estudo, outro veículo de tração elétrica, o Itaipu E400, ia para os primeiros testes. Tratava-se de um furgão com desenho moderno e agradável. Sua frente era curva e aerodinâmica, com amplo pára-brisa e pára-choque largo com faróis embutidos. Nas laterais havia somente os vidros das portas e os quebra-ventos; o resto era fechado. O painel era equipado com velocímetro, voltímetro, amperímetro e uma luz-piloto que indicava quando a carga estava por acabar. As baterias eram muito grandes e pesadas, cada uma com 80 kg e 40 volts. O motor elétrico era um Villares de 8 kW (11 cv) e girava a 3.000 rpm máximas. Apesar da potência ínfima, os elétricos conseguem boa aceleração porque o torque é constante em toda a faixa útil de rotações. Tinha câmbio de quatro marchas, embreagem e transmissão.
O consumo, se comparado a um carro a gasolina, seria de 90 km/l, mas a autonomia era pequena, de apenas 80 quilômetros. Para recarregar eram necessárias em média 7 horas numa tomada de 220 volts. Devido a este fator, era um veículo estritamente urbano. A velocidade máxima estava por volta de 80 km/h em grande silêncio, uma das grandes vantagens de um carro elétrico é não poluir com gases nem com barulho.
Primeiramente ele foi vendido a empresas para testes. Depois da versão furgão viriam a picape de cabines simples e dupla e o E400 para passageiros. O E400 CD (cabine dupla) era um misto de veículo de carga e passageiros, lançado em 1983. Com a mesma carroceria foi lançado um modelo com motor Volkswagen "a ar" e dupla carburação, que tinha a denominação G800. Ele trazia a mesma robustez e muito espaço interno para passageiros. Na versão CD havia um detalhe curioso: três portas, duas na direita e a outra na esquerda para o motorista. Do mesmo lado, atrás, vinha um enorme vidro lateral. Ganhava o passageiro que se sentasse deste lado, pois tinha ampla visibilidade. O G800 pesava 1.060 kg e podia carregar mais 1.100kg, sendo um utilitário valente e robusto.
Em 1980 a linha era composta de 10 modelos. Todos podiam ser fornecidos com motores a gasolina ou álcool, apesar de o engenheiro Gurgel combater muito o combustível vegetal. O álcool era subsidiado pelo governo, o que tornava o preço final para o consumidor mais baixo que a gasolina. Esta era a única forma de estimular o uso de um combustível que, pelo menor poder calorífico, resulta em um consumo cerca de 30% maior. O engenheiro achava que seria mais coerente usar essas terras para plantar alimentos para a população do que para alimentar veículos. Mais tarde ele poria fim às versões a álcool na marca.
Faziam parte da linha o X12 TR (teto rígido), o jipe comum com capota de lona (que era a versão mais barata do X12), o simpático Caribe, a versão Bombeiro, o X12 RM (teto rígido e meia capota) e a versão X12 M, militar. Este ultimo, exclusivo para as Forças Armadas, já vinha na cor-padrão do Exército, com emblemas nas portas e acessórios específicos. Numa outra faixa de preço havia o monovolume X15 TR de quatro portas,a picape cabine-dupla CD, a versão cabine-simples (CS), o cabine-simples com capota de lona e o Bombeiro. As versões Bombeiro de ambos modelos eram equipadas com luzes giratórias sobre o teto. Outros acessórios específicos também já saíam de fábrica para estas versões.
O X15, lançado em 1979, era um furgão com estilo bastante original. Parecia um veículo militar de assalto, um pequeno carro-forte. Logo teria versões picape de cabine simples e dupla. O furgão podia transportar até sete pessoas, ou duas e mais 500 kg de carga. Como os demais, usava a mecânica VW "a ar". Todos os vidros da carroceria, inclusive o pára-brisa, eram planos, sem nenhuma curvatura. Na frente muito inclinada, o pára-brisa era dividido em dois vidros, sendo que um deles, em frente ao motorista, ocupava 3/4 de toda a área frontal na versão militar (na civil os vidros tinham a mesma largura). Nesta versão também havia o guincho, faróis protegidos por grade, pequenas pás afixadas nas portas e capota de lona. Seu ângulo de entrada e saída para enfrentar rampas acentuadas era tão bom quanto o do X12. Tinha um ar muito robusto, com 3,72 m de comprimento, 1,90 m de largura e a altura total de 1,88 m, era um tijolo sobre rodas. Os faróis eram embutidos no largo e ameaçador pára-choque preto.
Em 1981, como novidade bem-vinda, os freios dianteiros no X12 passaram a ser a disco e a suspensão dianteira estava mais robusta. Novos detalhes de acabamento também o deixaram mais "luxuoso". Para o X15, era lançada a versão Van-Guard. Atrás dos bancos dianteiros havia dois colchões com revestimento plástico estampado, que combinavam com pequenos armários embutidos. Cortinas nas janelas e até um ventilador completavam o ambiente descontraído. O carro tinha um visual hippie. Na parte externa, faixas triplas e grossas nas laterais e o estepe fixado na traseira com cobertura nos mesmos tons da carroceria. Tinha só duas portas e, nas laterais, um vidro basculante retangular grande. Ideal para quem curtia acampar e programas ecológicos. Nesta versão ele ficou menos sisudo.
Também foi lançado o G15 L, picape cabine-simples mais longa (3,92 m) derivado do X15, que podia transportar até uma tonelada de carga. O tanque de combustível era de 70 litros e podia receber outro de mesma capacidade para aumentar a autonomia (vigorava então o absurdo e ineficiente regime de postos fechados nos fins de semana). Além da versão padrão, havia a cabine-dupla de duas ou quatro portas e a furgão.
A valente empresa nacional crescia. A fábrica tinha uma área de 360 mil m2, dos quais 15 mil eram construídos. Contava com 272 empregados entre técnicos e engenheiros, que dispunham de assistência médica e transporte. Só era menor em número de funcionários do que a Puma, no que se referia a pequenos fabricantes.
Em 1977 e 1978, a Gurgel foi o primeiro exportador na categoria veículos especiais e o segundo em produção e faturamento. Cerca 25% da produção seguia para fora do Brasil. Eram fabricados 10 carros por dia, sendo o X12 o principal produto da linha de montagem. A unidade de negócios era o Gurgel Trade Center, numa importante avenida da capital paulista. Havia um escritório executivo e um grande salão de exposição, além de um centro de apoio técnico aos revendedores.
No final de 1981 era desenvolvido o modelo Xef. Com duas portas e três volumes bem definidos, era um carro urbano bastante interessante. Contava com três bancos dianteiros, recurso pouco comum já aplicado no francês Matra Baghera. Mas este ultimo era um esportivo. Três adultos de boa estatura acomodavam-se com dificuldade e o acesso era digno de contorcionistas. O espaço para bagagem era mínimo.
Em 1982 o X12 normal seguia seu caminho na produção e nas estradas de terra, lama e areia do Brasil. Com a mesma carroceria mais reta da versão de teto rígido (TR), continuava com o pára-brisa dobrável e a capota de lona presa com botões de pressão. Os retrovisores externos e internos eram fixados na estrutura do pára-brisa. Tudo muito prático e simples. A carroceria agora recebia uma faixa branca que contornava a porta e o pára-lama. As portas eram de plástico reforçado. O pequeno e simpático jipe recebia opcionalmente rodas esportivas, brancas e bonitas, de 14 pol (pneus 7,00 x 14) no lugar das originais de 15 pol. Na versão Caribe a capota e os bancos eram listrados com cores vivas e alegres, que combinavam com a carroceria no mesmo tom, e as rodas brancas eram de série.
Em 1983 a versão de teto rígido do X12 recebia uma clarabóia no teto, bastante útil para refrigerar a cabine. Um defeito na versão TR que jamais foi sanado era que sua porta era presa ao pára-lama dianteiro por dobradiças. Qualquer um armado com uma chave Phillips podia desmontar a porta, entrar no jipe para roubar objetos ou mesmo dar uma voltinha com ele.
No modelo 1985 as novidades externas eram nova grade, pára-choques e lanternas traseiras. Por dentro o painel e o volante também eram mais modernos. A versão de luxo contava com bancos com encosto alto alem da clarabóia. Na parte mecânica vinham como novidade ignição eletrônica, nova suspensão traseira e diferencial com outra relação, que o deixou mais veloz em rodovias, econômico e silencioso. No mesmo ano a VW introduziu no Fusca a relação 3,875:1 como parte do pacote que objetivava redução de 5% no consumo médio de combustível. Como a Gurgel dependia do fornecimento da VW, a modificação foi estendida ao X12.
No ano anterior, a Gurgel lançava o jipe Carajás, outro nome indígena. As versões eram TL (teto de lona), TR (teto rígido) e MM (militar). Versões especiais ambulância e furgão também existiram. Um detalhe que logo chamava a atenção era o grande estepe sobre o alto capô dianteiro, solução inspirada nos Land Rovers que prejudicava a visibilidade frontal. De frente era notável a grade preta com quatro faróis retangulares, iguais aos do Passat. Opcionalmente podia vir com o guincho.

Carajas, o jipão

O Carajás era um jipão na melhor definição. Chamava a atenção por onde passasse. Tinha duas portas laterais e uma traseira com abertura meio a meio. Sobre o teto, uma clarabóia para ventilar a cabine. Dentro havia um forro duplo do teto, com cinco difusores de ar, dois para os passageiros da frente e três para os de trás - e funcionava bem. Sobre o teto, como opcional, era oferecido um enorme bagageiro.
A carroceria, em plástico reforçado com fibra-de-vidro, tinha sempre cor preto-fosco no teto. O detalhe podia mascarar sua altura, mas concorria para aquecer o interior. Os bancos dianteiros, com encosto para cabeça, corriam sobre trilhos e facilitavam a entrada de passageiros atrás. A posição de dirigir era boa só para as pessoas mais altas.
O chassi Plasteel também estava presente, junto com o sistema Selectraction. O motor dianteiro de 1,8 litro e 85 cv, refrigerado a água, era o mesmo do Santana e podia ser a álcool ou a gasolina. Depois veio a versão com motor diesel de 1,6 litro e 50 cv, também refrigerado a água e usado na Kombi. Um detalhe mecânico interessante era o TTS. Para transmitir a força do motor para as rodas traseiras, era usado o Tork Tube System, um tubo de aço, com uma árvore de transmissão de aço em seu interior, que interligava o motor dianteiro ao conjunto traseiro de embreagem, câmbio, diferencial e semi-árvores. Uma ótima solução, encontrada pelo fato de o Carajás usar quase todo o conjunto mecânico do Santana, que é de tração dianteira. A caixa de mudanças, entretanto, era de Volkswagen "a ar".
O sistema era novidade no país, baseado num transeixo, ou transmissão e diferencial juntos, instalados na traseira de um veículo de motor dianteiro. Mas mostrou-se frágil, pois era muita potência do motor 1,8-litro transmitida para o conjunto traseiro previsto para motores 1,6 refrigerado a ar. A embreagem situava-se na dianteira do veiculo, junto ao volante motor, sendo um defeito relevante, pois a troca de marcha deveria ser feita com um tempo maior em relação a outros veículos, devido a inércia do conjunto TTS com o eixo primário da caixa de transmissão.
A suspensão do Carajás era independente nas quatro rodas. Na frente era utilizado o conjunto de eixo dianteiro da Kombi, enquanto na traseira a disposição era de braço semiarrastado com mola helicoidal. Apesar das dimensões e do peso do carro, era confortável, ótimo de curva, de rodar macio e tranqüilo no asfalto ou em terrenos difíceis. Sua capacidade de carga era de 750 kg.
Em 1988 eram apresentadas as versões VIP e LE do Carajás. As mudanças eram na porta traseira, agora numa peça só; nas maçanetas, capô e grade frontal, que passava a fazer parte da carroceria. Na VIP as rodas eram cromadas, os vidros fumê, a pintura metálica acrílica e os bancos tinham melhor revestimento. Mas o Carajás era caro para o público e não alcançou o sucesso esperado.
Em 1986 o nome do X12 havia foi trocado por Tocantins, acompanhado de ligeira reforma estética. O veiculo passou a apresentar linhas mais modernas, mas ainda lembrando bem suas origens. Ele deixou de ser fabricado em 1989.
Devido às exportações para o Caribe, o X12 atrapalhou e encerrou a produção do VW 181, utilitário de conceito similar feito pela filial mexicana da Volkswagen. As relações com a fábrica alemã, que eram ótimas, foram abaladas, mas o próprio Gurgel não queria ficar atrelado à VW a vida toda. Ele queria voar mais alto, e quase conseguiu.

Os Minicarros 100% nacionais

Além dos utilitários, Gurgel sonhava com um minicarro econômico, barato e 100% brasileiro para os centros urbanos. Em 7 de setembro de 1987, segundo ele, dia da independência tecnológica brasileira, foi apresentado o projeto Cena, "Carro Econômico Nacional", ou Gurgel 280. Este era o primeiro minicarro da empresa, projetado para ser o mais barato do país. Os motores, de configuração única no mundo, eram como os VW 1.300 e 1.600 cortados ao meio: dois cilindros horizontais opostos, 650 ou 800 cm3 , mas refrigerados a água. A potência seria de 26 ou 32 cv conforme a versão.
O carro seria lançado em opções 280 S, de sedã, e 280 M, de múltiplo, com capota removível - restariam, porém, as molduras das portas e vidros laterais, bem como uma barra estrutural do teto. Solução interessante era o porta-luvas, uma maleta executiva que podia ser removida. Com a evolução do projeto, o motor menor foi abandonado e a cilindrada fixada em 0,8 litro, originando o nome BR-800. O motor fundido em liga de alumínio-silício era batizado como Enertron e projetado pela própria empresa. Este motor foi inteiramente pesquisado e desenvolvido pela Gurgel no Brasil, e ainda contou com elogios de marcas consagradas, como a Porshe, Volvo, Citroën e vários especialistas em motores.
O avanço de ignição era controlado por um microprocessador (garantido durante cinco anos) e não havia necessidade de distribuidor, pois o disparo era simultâneo nos dois cilindros, idéia aproveitada dos motores Citroën de disposição semelhante. O sistema de ignição era outra patente da Gurgel.
O pequeno motor reunia alguns aspectos notáveis. Por exemplo, podia ser levado a praticamente 6.000 rpm sem flutuação de válvula (fechamento incompleto devido à velocidade excessiva), o que o motor VW não tolerava, mal passando de 5.000 rpm. A refrigeração a água com ventilador elétrico funcionava muito bem. A velocidade máxima era de 117 km/h.
Gurgel, sempre querendo incorporar avanços, idealizou o motor sem correia trapezoidal para acionar acessórios, como o alternador, visando facilidade de manutenção, preocupação nada desprezível. Para isso, o alternador era acoplado diretamente ao comando de válvulas. Só que devido à rotação do comando ser metade da do motor, o alternador não desenvolvia potência suficiente em várias condições de uso, como todos os acessórios ligados ao dirigir moderadamente. O resultado era a descarga da bateria, uma inconveniência e tanto para o motorista. Assim, a fábrica não demorou para voltar atrás e modificar a montagem do alternador, que passou a receber movimento do motor pela maneira tradicional de polias e correia trapezoidal, e com redução apropriada (cerca de 2:1), resolvendo definitivamente o problema.
O BR-800 podia transportar quatro passageiros com relativo conforto e 200 kg de carga. Pesava 650 kg, tinha duas portas e vidros corrediços, o que prejudicava a ventilação da cabine. Para guardar objetos no pequeno porta-malas, abria-se o vidro traseiro basculante, que servia de porta; o acesso não era dos mais cômodos. Ainda assim era melhor do que a solução original de vidro traseiro fixo, em que era preciso acessar aquele compartimento por dentro do carro, como no Fusca. Por outro lado, o estepe tinha acesso muito prático por fora, em uma tampa traseira.
O Governo Federal, num louvável gesto de apoio à indústria nacional, concedeu ao carrinho o direito de pagar apenas 5% de IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), enquanto os demais carros pagavam 25% ou mais dependendo da cilindrada. O objetivo de projetar um carro com o preço final de US$ 3000 não se concretizou, o preço acabou ficando por volta de US$ 7000, mas graças ao incentivo fiscal, ainda era cerca de 30% mais barato que os compactos de outras montadoras, a exemplo da época poderíamos citar o FIAT Uno.
Lançado em 1988, foi produzido até 1991. De início, a única forma de compra era a aquisição de ações da Gurgel Motores S/A, que teve a adesão de 8.000 pessoas. Sob uma campanha convidativa - "Se Henry Ford o convidasse para ser seu sócio, você não aceitaria?" -, foram vendidos 10.000 lotes de ações. Cada comprador pagou os US$ 7.000 pelo carro e cerca de US$ 1.500 pelas ações, o que se constituiu um bom negócio para muitos - no final de 1989 havia ágio de 100% pelas mais de 1.000 unidades já produzidas.
Em 1990, quando o BR-800 começava a ser vendido sem o pacote compulsório de ações, quando parecia estar surgindo uma nova potência (tupiniquim) no mercado automobilístico, o Governo isenta todos os carros com motor menor que 1000cm³ do IPI (numa espécie de traição à Gurgel). Assim a Fiat, seguida por outras montadoras, lançou quase que instantaneamente o Uno Mille com o mesmo preço do BR-800, mas que oferecia mais espaço e desempenho.
Tentando reagir a Gurgel lança em 1992 uma evolução do BR-800, o Supermini. Tinha um estilo muito próprio e moderno. Media 3,19 m de comprimento, sendo ainda o menor carro fabricado aqui. Estacionar era com ele mesmo, devido à pequena distância entre eixos (1,90 m) e uma direção leve. Tinha faróis quadrados, grade na mesma cor do carro, duas portas, dois volumes e boa área envidraçada. As linhas eram mais equilibradas que em seu antecessor.
A carroceria era em plástico FRP e tinha garantia de 100 mil quilômetros, alta resistência a impactos e, como tradição da fábrica, estava livre da corrosão. Era montada sobre um chassi de aço muito bem projetado e seguro, bem resistente à torção. Os pára-choques dianteiro e traseiro, assim como a lateral inferior, vinham na cor prata.
O Supermíni usava o mesmo motor bicilíndrico, só que um pouco mais potente (3cv a mais). Todo o conjunto motriz tinha garantia de fábrica de 30 mil quilômetros. Os vidros dianteiros não eram mais corrediços nem tinham quebra-ventos, e agora havia uma verdadeira tampa de porta-malas. O banco traseiro bipartido possibilitava o aumento da capacidade do porta-malas. O consumo era baixo. Fazia 14 km/l na cidade e, a uma velocidade constante de 80 km/h, até 19 km/l em quarta marcha.
Como destaques tinha motor com suspensão pendular, com coxim em posição elevada. A suspensão dianteira já não era mais a Springshock do BR-800 - mola e amortecedor combinados, fabricados na própria Gurgel, que apresentavam enorme deficiência -, mas uma disposição convencional de braços transversais superpostos com mola helicoidal. A traseira era por segmento de feixe de molas longitudinal. A versão SL trazia como equipamentos de série conta-giros, antena de teto, faróis com lâmpadas halógenas e rádio/toca-fitas. Até junho de 1992, 1.500 unidades do Supermini haviam sido vendidas.
Pouco depois a Gurgel mostrava o Motomachine, veículo bastante interessante. Acomodava dois passageiros e usava, entre outras peças, o mesmo motor do Supermíni. Tinha para-brisa rebatível, e tanto o teto de plástico quanto as portas em acrílico transparente eram removíveis. Era um carro de uso restrito, feito para a curtição ou o transporte básico nos grandes centros. Poucas unidades circulam e são dignas de apreciação e curiosidade.
O próximo projeto, batizado de Delta, seria um novo carro popular que usaria o mesmo motor de 800cm3 e custaria entre US$ 4000 e US$ 6000, mas não chegou a ser fabricado. Gurgel chegou a adquirir todas as máquinas-ferramenta que acabaram não sendo usadas.
Atolada em dívidas e enfraquecida no mercado pela concorrência das multinacionais, a Gurgel pediu concordata em junho de 1993. Houve uma última tentativa de salvar a fábrica em 1994, quando a Gurgel pediu ao governo federal um financiamento de US$ 20 milhões, mas este o foi negado, e a fábrica acabou fechando as portas no final do ano.
Sem dúvida o grande engenheiro João Gurgel deixou seu legado na indústria nacional. Foi um homem à frente do seu tempo, corajoso e patriota que infelizmente não conseguiu suportar sozinho a concorrência das grandes multinacionais.
Gurgel

Gurgel Motores

A cidade de Rio Claro, no interior de São Paulo, já sediou uma importante indústria nacional de automóveis que em 25 anos produziu utilitários, carros urbanos e até elétricos. Foi fundada em 1º de setembro de 1969 pelo engenheiro mecânico e eletricista João Augusto Conrado do Amaral Gurgel, que sempre sonhou com o carro genuinamente brasileiro. Devido às exportações que sua empresa passou a fazer com o sucesso dos produtos, ele sempre dizia que sua fábrica não era uma multinacional, e sim "muitonacional". O capital era 100% brasileiro.
Este homem dinâmico e de grandes idéias formou-se na Escola Politécnica de São Paulo em 1949 e, em 1953, no General Motors Institute nos Estados Unidos. Conta-se que, ao apresentar o projeto de um automóvel popular, o Tião, ao professor, teria ouvido: "Isto e coisa para multinacionais. Carro não se fabrica, Gurgel, se compra".
Gurgel começou produzindo karts e minicarros para crianças. Em 1969 fundou a Gurgel Veículos, seu primeiro modelo foi um bugue com linhas muito modernas e interessantes. Chamava-se Ipanema e utilizava chassi, motor e suspensão Volkswagen. Gurgelsempre batizou seus carros com nomes bem brasileiros e homenageava nossas tribos de índios.
Em 1973 chegava o Xavante, que deu início ao sucesso da marca. Este foi seu principal produto durante toda a evolução e existência da fábrica. De início com a sigla X10, era um jipe que gostava de estradas ruins e não se importava com a meteorologia. Sobre o capô dianteiro era notável a presença do estepe. Sua distância do solo era grande, o pára-brisa rebatia para melhor sentir-se o vento e a capota era de lona. Tinha linhas curvas, seguindo uma tendência dos bugues da época. Um par de pás afixadas nas portas chamava a atenção e logo anunciava o propósito do veículo.
O jipe era equipado com a tradicional, simples e robusta mecânica Volkswagen refrigerada a ar, com motor e tração traseiros. O acesso ao motor nunca foi dos mais favoráveis: era feito por uma tampa estreita e não muito comprida. O chassi era uma união de plástico e aço (projeto patenteado pela Gurgel desde o início de sua aplicação, denominado Plasteel), que aliava alta resistência a torção e difícil deformação. A carroceria era em plástico reforçado com fibra-de-vidro (FRP). Conta-se que, na fábrica, existia um taco de beisebol para que os visitantes batessem forte sobre a carroceria para testar a resistência. Não amassava, mas logicamente o teste pouco comum era feito antes de o carro receber pintura.
Pelo emprego destes materiais a corrosão estava completamente banida. A carroceria e o chassi formavam um só bloco. As rodas, as mesmas da Kombi, eram equipadas com pneus de uso misto. A suspensão, como no Fusca, era independente nas quatro rodas, em um conjunto muito robusto , mas na traseira a mola era helicoidal, em vez da tradicional barra de torção. Para subir ou descer morros não havia grande dificuldade. A carroceria tinha ângulo de entrada de 63 graus e 41 graus de saída.
Além do Plasteel, outro recurso interessante do Xavante era o Selectraction. Tratava-se de um sistema movido por alavancas, ao lado do freio de estacionamento, para frear uma das rodas traseiras. Era muito útil em atoleiros, pois freando uma das rodas que estivesse girando em falso - característica de todo diferencial - a força era transmitida à outra, facilitando a saída do barro. Com este sistema o carro ficava mais leve e econômico do que se tivesse tração nas quatro rodas e a eficiência era quase tão boa quanto.
O Xavante logo agradou ao público, por sair da concepção tradicional dos bugues, e ao Exército brasileiro, que fez grande encomenda. Havia uma versão militar especialmente produzida para este fim, o que deu ótimo impulso à produção. Na primeira reestilização, em 1975, as linhas da carroceria ficaram mais retas. O estepe agora ficava sob o capô, mas o ressalto neste anunciava sua presença. Sobre os pára-lamas dianteiros ficavam as lanternas de direção, idênticas às do Fusca.
Além do X10, mais simples, existia o X12, versão civil do jipe das forças armadas. O motor era o mesmo 1,6-litro de um só carburador, que fornecia 49 cv e usava a relação de diferencial mais curta do Fusca 1300 (4,375:1 no lugar de 4,125:1). Atrás das portas havia uma pequena grade plástica para ventilação do motor. A velocidade final não chegava a empolgar: fazia no máximo 108 km/h e de 0 a 100 km/h levava penosos 38 s. Mas seu objetivo era mostrar serviço e desempenho com relativo conforto em caminhos difíceis, pouco apropriados a carros de passeio.
Gurgel 
                                                    X12 TL
Sua estabilidade era crítica em ruas de asfalto ou paralelepípedo. Nas pistas, ruas e estradas era melhor não arriscar nas curvas. O jipe gostava mesmo de lama, terra, água, neve, praia, montanha e floresta, que eram seu hábitat natural. Era fácil de estacionar, de dirigir e de domar. Por causa de todo o conjunto muito robusto, era um veículo barulhento para o dia-a-dia.
Em 1974 a Gurgel apresentava um pioneiro projeto de carro elétrico. O Itaipu, alusão à usina hidrelétrica, era bastante interessante: ótima área envidraçada, quatro faróis quadrados e um limpador sobre o enorme pára-brisa, que tinha a mesma inclinação do capô traseiro. Visto de lado, era um trapézio sobre rodas. Era um minicarro de uso exclusivamente urbano para duas pessoas, fácil de dirigir e manobrar, que usava baterias recarregáveis em qualquer tomada de luz, como um eletrodoméstico.
Ele teria tudo para dar certo se não fosse os problemas a com durabilidade, capacidade e peso das baterias, o que até hoje ainda é um desafio. Um dos modelos elétricos se chamaria CENA, carro elétrico nacional, nome que ressurgiria no projeto do BR-280/800, com o "E" representando econômico".
Em 1976 chegava o X12 TR, de teto rígido. Suas linhas estavam mais retas e ainda transmitiam respeito; continuava um utilitário bastante rústico. Os faróis redondos agora estavam embutidos na carroceria e protegidos por pequena grade. Na frente destacava-se o guincho manual com cabo de 25 metros de extensão, por sistema de catraca, para situações fora-de-estrada. Na traseira, sobre a pequena tampa do motor, havia um tanque de combustível sobressalente de 20 litros ou, como alguns gostavam de chamar, camburão. Era um dispositivo útil e bem-vindo para as aventuras fora-de-estrada. Na frente, o pequeno porta-malas abrigava o estepe e o tanque de combustível de 40 litros. Para as malas havia quase nenhum espaço, e o painel, muito simples, continha o estritamente necessário.
O chassi Plasteel continuava como padrão, e a fábrica oferecia uma garantia inédita de 100.000 quilômetros. Fato interessante é que todo Gurgel tinha carrocerias originais: o engenheiro nunca copiou nada em termos de estilo, coisa corriqueira hoje em dia entre fabricantes de veículos fora-de-estrada. Em 1979 toda a linha de produtos foi exposta no Salão do Automóvel de Genebra, na Suíça. Neste evento a propaganda do jipe nacional e o volume de vendas foram muito bons.
Em 1980, depois de cinco anos de estudo, outro veículo de tração elétrica, o Itaipu E400, ia para os primeiros testes. Tratava-se de um furgão com desenho moderno e agradável. Sua frente era curva e aerodinâmica, com amplo pára-brisa e pára-choque largo com faróis embutidos. Nas laterais havia somente os vidros das portas e os quebra-ventos; o resto era fechado. O painel era equipado com velocímetro, voltímetro, amperímetro e uma luz-piloto que indicava quando a carga estava por acabar. As baterias eram muito grandes e pesadas, cada uma com 80 kg e 40 volts. O motor elétrico era um Villares de 8 kW (11 cv) e girava a 3.000 rpm máximas. Apesar da potência ínfima, os elétricos conseguem boa aceleração porque o torque é constante em toda a faixa útil de rotações. Tinha câmbio de quatro marchas, embreagem e transmissão.
O consumo, se comparado a um carro a gasolina, seria de 90 km/l, mas a autonomia era pequena, de apenas 80 quilômetros. Para recarregar eram necessárias em média 7 horas numa tomada de 220 volts. Devido a este fator, era um veículo estritamente urbano. A velocidade máxima estava por volta de 80 km/h em grande silêncio, uma das grandes vantagens de um carro elétrico é não poluir com gases nem com barulho.
Primeiramente ele foi vendido a empresas para testes. Depois da versão furgão viriam a picape de cabines simples e dupla e o E400 para passageiros. O E400 CD (cabine dupla) era um misto de veículo de carga e passageiros, lançado em 1983. Com a mesma carroceria foi lançado um modelo com motor Volkswagen "a ar" e dupla carburação, que tinha a denominação G800. Ele trazia a mesma robustez e muito espaço interno para passageiros. Na versão CD havia um detalhe curioso: três portas, duas na direita e a outra na esquerda para o motorista. Do mesmo lado, atrás, vinha um enorme vidro lateral. Ganhava o passageiro que se sentasse deste lado, pois tinha ampla visibilidade. O G800 pesava 1.060 kg e podia carregar mais 1.100kg, sendo um utilitário valente e robusto.
Em 1980 a linha era composta de 10 modelos. Todos podiam ser fornecidos com motores a gasolina ou álcool, apesar de o engenheiro Gurgel combater muito o combustível vegetal. O álcool era subsidiado pelo governo, o que tornava o preço final para o consumidor mais baixo que a gasolina. Esta era a única forma de estimular o uso de um combustível que, pelo menor poder calorífico, resulta em um consumo cerca de 30% maior. O engenheiro achava que seria mais coerente usar essas terras para plantar alimentos para a população do que para alimentar veículos. Mais tarde ele poria fim às versões a álcool na marca.
Faziam parte da linha o X12 TR (teto rígido), o jipe comum com capota de lona (que era a versão mais barata do X12), o simpático Caribe, a versão Bombeiro, o X12 RM (teto rígido e meia capota) e a versão X12 M, militar. Este ultimo, exclusivo para as Forças Armadas, já vinha na cor-padrão do Exército, com emblemas nas portas e acessórios específicos. Numa outra faixa de preço havia o monovolume X15 TR de quatro portas,a picape cabine-dupla CD, a versão cabine-simples (CS), o cabine-simples com capota de lona e o Bombeiro. As versões Bombeiro de ambos modelos eram equipadas com luzes giratórias sobre o teto. Outros acessórios específicos também já saíam de fábrica para estas versões.
O X15, lançado em 1979, era um furgão com estilo bastante original. Parecia um veículo militar de assalto, um pequeno carro-forte. Logo teria versões picape de cabine simples e dupla. O furgão podia transportar até sete pessoas, ou duas e mais 500 kg de carga. Como os demais, usava a mecânica VW "a ar". Todos os vidros da carroceria, inclusive o pára-brisa, eram planos, sem nenhuma curvatura. Na frente muito inclinada, o pára-brisa era dividido em dois vidros, sendo que um deles, em frente ao motorista, ocupava 3/4 de toda a área frontal na versão militar (na civil os vidros tinham a mesma largura). Nesta versão também havia o guincho, faróis protegidos por grade, pequenas pás afixadas nas portas e capota de lona. Seu ângulo de entrada e saída para enfrentar rampas acentuadas era tão bom quanto o do X12. Tinha um ar muito robusto, com 3,72 m de comprimento, 1,90 m de largura e a altura total de 1,88 m, era um tijolo sobre rodas. Os faróis eram embutidos no largo e ameaçador pára-choque preto.
Gurgel 
X15
Em 1981, como novidade bem-vinda, os freios dianteiros no X12 passaram a ser a disco e a suspensão dianteira estava mais robusta. Novos detalhes de acabamento também o deixaram mais "luxuoso". Para o X15 era lançada a versão Van-Guard. Atrás dos bancos dianteiros havia dois colchões com revestimento plástico estampado, que combinavam com pequenos armários embutidos. Cortinas nas janelas e até um ventilador completavam o ambiente descontraído. O carro tinha um visual hippie. Na parte externa, faixas triplas e grossas nas laterais e o estepe fixado na traseira com cobertura nos mesmos tons da carroceria. Tinha só duas portas e, nas laterais, um vidro basculante retangular grande. Ideal para quem curtia acampar e programas ecológicos. Nesta versão ele ficou menos sisudo.
Também foi lançado o G15 L, picape cabine-simples mais longa (3,92 m) derivado do X15, que podia transportar até uma tonelada de carga. O tanque de combustível era de 70 litros e podia receber outro de mesma capacidade para aumentar a autonomia (vigorava então o absurdo e ineficiente regime de postos fechados nos fins de semana). Além da versão padrão, havia a cabine-dupla de duas ou quatro portas e a furgão.
A valente empresa nacional crescia. A fábrica tinha uma área de 360 mil m2, dos quais 15 mil eram construídos. Contava com 272 empregados entre técnicos e engenheiros, que dispunham de assistência médica e transporte. Só era menor em número de funcionários do que a Puma, no que se referia a pequenos fabricantes.
Em 1977 e 1978, a Gurgel foi o primeiro exportador na categoria veículos especiais e o segundo em produção e faturamento. Cerca 25% da produção seguia para fora do Brasil. Eram fabricados 10 carros por dia, sendo o X12 o principal produto da linha de montagem. A unidade de negócios era o Gurgel Trade Center, numa importante avenida da capital paulista. Havia um escritório executivo e um grande salão de exposição, além de um centro de apoio técnico aos revendedores.
No final de 1981 era desenvolvido o modelo Xef. Com duas portas e três volumes bem definidos, era um carro urbano bastante interessante. Contava com três bancos dianteiros, recurso pouco comum já aplicado no francês Matra Baghera. Mas este ultimo era um esportivo. Três adultos de boa estatura acomodavam-se com dificuldade e o acesso era digno de contorcionistas. O espaço para bagagem era mínimo.
Em 1982 o X12 normal seguia seu caminho na produção e nas estradas de terra, lama e areia do Brasil. Com a mesma carroceria mais reta da versão de teto rígido (TR), continuava com o pára-brisa dobrável e a capota de lona presa com botões de pressão. Os retrovisores externos e internos eram fixados na estrutura do pára-brisa. Tudo muito prático e simples. A carroceria agora recebia uma faixa branca que contornava a porta e o pára-lama. As portas eram de plástico reforçado. O pequeno e simpático jipe recebia opcionalmente rodas esportivas, brancas e bonitas, de 14 pol (pneus 7,00 x 14) no lugar das originais de 15 pol. Na versão Caribe a capota e os bancos eram listrados com cores vivas e alegres, que combinavam com a carroceria no mesmo tom, e as rodas brancas eram de série.
Em 1983 a versão de teto rígido do X12 recebia uma clarabóia no teto, bastante útil para refrigerar a cabine. Um defeito na versão TR que jamais foi sanado era que sua porta era presa ao pára-lama dianteiro por dobradiças. Qualquer um armado com uma chave Phillips podia desmontar a porta, entrar no jipe para roubar objetos ou mesmo dar uma voltinha com ele.
No modelo 1985 as novidades externas eram nova grade, pára-choques e lanternas traseiras. Por dentro o painel e o volante também eram mais modernos. A versão de luxo contava com bancos com encosto alto alem da clarabóia. Na parte mecânica vinham como novidade ignição eletrônica, nova suspensão traseira e diferencial com outra relação, que o deixou mais veloz em rodovias, econômico e silencioso. No mesmo ano a VW introduziu no Fusca a relação 3,875:1 como parte do pacote que objetivava redução de 5% no consumo médio de combustível. Como a Gurgel dependia do fornecimento da VW, a modificação foi estendida ao X12.
No ano anterior, a Gurgel lançava o jipe Carajás, outro nome indígena. As versões eram TL (teto de lona), TR (teto rígido) e MM (militar). Versões especiais ambulância e furgão também existiram. Um detalhe que logo chamava a atenção era o grande estepe sobre o alto capô dianteiro, solução inspirada nos Land Rovers que prejudicava a visibilidade frontal. De frente era notável a grade preta com quatro faróis retangulares, iguais aos do Passat. Opcionalmente podia vir com o guincho.
O Carajás era um jipão na melhor definição. Chamava a atenção por onde passasse. Tinha duas portas laterais e uma traseira com abertura meio a meio. Sobre o teto, uma clarabóia para ventilar a cabine. Dentro havia um forro duplo do teto, com cinco difusores de ar, dois para os passageiros da frente e três para os de trás - e funcionava bem. Sobre o teto, como opcional, era oferecido um enorme bagageiro.
A carroceria, em plástico reforçado com fibra-de-vidro, tinha sempre cor preto-fosco no teto. O detalhe podia mascarar sua altura, mas concorria para aquecer o interior. Os bancos dianteiros, com encosto para cabeça, corriam sobre trilhos e facilitavam a entrada de passageiros atrás. A posição de dirigir era boa só para as pessoas mais altas.
O chassi Plasteel também estava presente, junto com o sistema Selectraction. O motor dianteiro de 1,8 litro e 85 cv, refrigerado a água, era o mesmo do Santana e podia ser a álcool ou a gasolina. Depois veio a versão com motor diesel de 1,6 litro e 50 cv, também refrigerado a água e usado na Kombi. Um detalhe mecânico interessante era o TTS.
Para transmitir a força do motor para as rodas traseiras, era usado o Tork Tube System, um tubo de aço, com uma árvore de transmissão de aço em seu interior, que interligava o motor dianteiro ao conjunto traseiro de embreagem, câmbio, diferencial e semi-árvores. Uma ótima solução, encontrada pelo fato de o Carajás usar quase todo o conjunto mecânico do Santana, que é de tração dianteira. A caixa de mudanças, entretanto, era de Volkswagen "a ar".
O sistema era novidade no país, baseado num transeixo, ou transmissão e diferencial juntos, instalados na traseira de um veículo de motor dianteiro. Mas mostrou-se frágil, pois era muita potência do motor 1,8-litro transmitida para o conjunto traseiro previsto para motores 1,6 refrigerado a ar. A embreagem situava-se na dianteira do veiculo, junto ao volante motor, sendo um defeito relevante, pois a troca de marcha deveria ser feita com um tempo maior em relação a outros veículos, devido a inércia do conjunto TTS com o eixo primário da caixa de transmissão.
A suspensão do Carajás era independente nas quatro rodas. Na frente era utilizado o conjunto de eixo dianteiro da Kombi, enquanto na traseira a disposição era de braço semiarrastado com mola helicoidal. Apesar das dimensões e do peso do carro, era confortável, ótimo de curva, de rodar macio e tranqüilo no asfalto ou em terrenos difíceis. Sua capacidade de carga era de 750 kg.
Em 1988 eram apresentadas as versões VIP e LE do Carajás. As mudanças eram na porta traseira, agora numa peça só; nas maçanetas, capô e grade frontal, que passava a fazer parte da carroceria. Na VIP as rodas eram cromadas, os vidros fumê, a pintura metálica acrílica e os bancos tinham melhor revestimento. Mas o Carajás era caro para o público e não alcançou o sucesso esperado.
Em 1986 o nome do X12 havia foi trocado por Tocantins, acompanhado de ligeira reforma estética. O veiculo passou a apresentar linhas mais modernas, mas ainda lembrando bem suas origens. Ele deixou de ser fabricado em 1989.
Devido às exportações para o Caribe, o X12 atrapalhou e encerrou a produção do VW 181, utilitário de conceito similar feito pela filial mexicana da Volkswagen. As relações com a fábrica alemã, que eram ótimas, foram abaladas, mas o próprio Gurgel não queria ficar atrelado à VW a vida toda. Ele queria voar mais alto, e quase conseguiu.
Além dos utilitários, Gurgel sonhava com um minicarro econômico, barato e 100% brasileiro para os centros urbanos. Em 7 de setembro de 1987, segundo ele, dia da independência tecnológica brasileira, foi apresentado o projeto Cena, "Carro Econômico Nacional", ou Gurgel 280. Este era o primeiro minicarro da empresa, projetado para ser o mais barato do país. Os motores, de configuração única no mundo, eram como os VW 1.300 e 1.600 cortados ao meio: dois cilindros horizontais opostos, 650 ou 800 cm3 , mas refrigerados a água. A potência seria de 26 ou 32 cv conforme a versão.
O carro seria lançado em opções 280 S, de sedã, e 280 M, de múltiplo, com capota removível - restariam, porém, as molduras das portas e vidros laterais, bem como uma barra estrutural do teto. Solução interessante era o porta-luvas, uma maleta executiva que podia ser removida. Com a evolução do projeto, o motor menor foi abandonado e a cilindrada fixada em 0,8 litro, originando o nome BR-800. O motor fundido em liga de alumínio-silício era batizado como Enertron e projetado pela própria empresa. Este motor foi inteiramente pesquisado e desenvolvido pela Gurgel no Brasil, e ainda contou com elogios de marcas consagradas, como a Porshe, Volvo, Citroën e vários especialistas em motores.
O avanço de ignição era controlado por um microprocessador (garantido durante cinco anos) e não havia necessidade de distribuidor, pois o disparo era simultâneo nos dois cilindros, idéia aproveitada dos motores Citroën de disposição semelhante. O sistema de ignição era outra patente da Gurgel.
Gurgel 
Motor Enertron
O pequeno motor reunia alguns aspectos notáveis. Por exemplo, podia ser levado a praticamente 6.000 rpm sem flutuação de válvula (fechamento incompleto devido à velocidade excessiva), o que o motor VW não tolerava, mal passando de 5.000 rpm. A refrigeração a água com ventilador elétrico funcionava muito bem. A velocidade máxima era de 117 km/h.
Gurgel, sempre querendo incorporar avanços, idealizou o motor sem correia trapezoidal para acionar acessórios, como o alternador, visando facilidade de manutenção, preocupação nada desprezível. Para isso, o alternador era acoplado diretamente ao comando de válvulas. Só que devido à rotação do comando ser metade da do motor, o alternador não desenvolvia potência suficiente em várias condições de uso, como todos os acessórios ligados ao dirigir moderadamente. O resultado era a descarga da bateria, uma inconveniência e tanto para o motorista. Assim, a fábrica não demorou para voltar atrás e modificar a montagem do alternador, que passou a receber movimento do motor pela maneira tradicional de polias e correia trapezoidal, e com redução apropriada (cerca de 2:1), resolvendo definitivamente o problema.
O BR podia transportar quatro passageiros com relativo conforto e 200 kg de carga. Pesava 650 kg, tinha duas portas e vidros corrediços, o que prejudicava a ventilação da cabine. Para guardar objetos no pequeno porta-malas, abria-se o vidro traseiro basculante, que servia de porta; o acesso não era dos mais cômodos. Ainda assim era melhor do que a solução original de vidro traseiro fixo, em que era preciso acessar aquele compartimento por dentro do carro, como no Fusca. Por outro lado, o estepe tinha acesso muito pratico por fora, em uma tampa traseira.
O Governo Federal, num louvável gesto de apoio à indústria nacional, concedeu ao carrinho o direito de pagar apenas 5% de IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), enquanto os demais carros pagavam 25% ou mais dependendo da cilindrada. O objetivo de projetar um carro com o preço final de US$ 3000 não se concretizou, o preço acabou ficando por volta de US$ 7000, mas graças ao incentivo fiscal, ainda era cerca de 30% mais barato que os compactos de outras montadoras, a exemplo da época poderíamos citar o FIAT Uno.
Lançado em 1988, foi produzido até 1991. De início, a única forma de compra era a aquisição de ações da Gurgel Motores S/A, que teve a adesão de 8.000 pessoas. Sob uma campanha convidativa - "Se Henry Ford o convidasse para ser seu sócio, você não aceitaria?" -, foram vendidos 10.000 lotes de ações. Cada comprador pagou os US$ 7.000 pelo carro e cerca de US$ 1.500 pelas ações, o que se constituiu um bom negócio para muitos - no final de 1989 havia ágio de 100% pelas mais de 1.000 unidades já produzidas.
Em 1990, quando o BR-800 começava a ser vendido sem o pacote compulsório de ações, quando parecia estar surgindo uma nova potência (tupiniquim) no mercado automobilístico, o Governo isenta todos os carros com motor menor que 1000cm3 do IPI (numa espécie de traição à Gurgel). Assim a Fiat, seguida por outras montadoras, lançou quase que instantaneamente o Uno Mille com o mesmo preço do BR-800, mas que oferecia mais espaço e desempenho.
Tentando reagir a Gurgel lança em 1992 uma evolução do BR-800, o Supermini. Tinha um estilo muito próprio e moderno. Media 3,19 m de comprimento, sendo ainda o menor carro fabricado aqui. Estacionar era com ele mesmo, devido à pequena distância entre eixos (1,90 m) e uma direção leve. Tinha faróis quadrados, grade na mesma cor do carro, duas portas, dois volumes e boa área envidraçada. As linhas eram mais equilibradas que em seu antecessor.
A carroceria era em plástico FRP e tinha garantia de 100 mil quilômetros, alta resistência a impactos e, como tradição da fábrica, estava livre da corrosão. Era montada sobre um chassi de aço muito bem projetado e seguro, bem resistente à torção. Os pára-choques dianteiro e traseiro, assim como a lateral inferior, vinham na cor prata.
O Supermíni usava o mesmo motor bicilíndrico, só que um pouco mais potente (3cv a mais). Todo o conjunto motriz tinha garantia de fábrica de 30 mil quilômetros. Os vidros dianteiros não eram mais corrediços nem tinham quebra-ventos, e agora havia uma verdadeira tampa de porta-malas. O banco traseiro bipartido possibilitava o aumento da capacidade do porta-malas. O consumo era baixo. Fazia 14 km/l na cidade e, a uma velocidade constante de 80 km/h, até 19 km/l em quarta marcha.
Como destaques tinha motor com suspensão pendular, com coxim em posição elevada. A suspensão dianteira já não era mais a Springshock do BR-800 - mola e amortecedor combinados, fabricados na própria Gurgel, que apresentavam enorme deficiência -, mas uma disposição convencional de braços transversais superpostos com mola helicoidal. A traseira era por segmento de feixe de molas longitudinal. A versão SL trazia como equipamentos de série conta-giros, antena de teto, faróis com lâmpadas halógenas e rádio/toca-fitas. Até junho de 1992, 1.500 unidades do Supermini haviam sido vendidas.
Pouco depois a Gurgel mostrava o Motomachine, veículo bastante interessante. Acomodava dois passageiros e usava, entre outras peças, o mesmo motor do Supermíni. Tinha para-brisa rebatível, e tanto o teto de plástico quanto as portas em acrílico transparente eram removíveis. Era um carro de uso restrito, feito para a curtição ou o transporte básico nos grandes centros. Poucas unidades circulam e são dignas de apreciação e curiosidade.
O próximo projeto, batizado de Delta, seria um novo carro popular que usaria o mesmo motor de 800cm3 e custaria entre US$ 4000 e US$ 6000, mas não chegou a ser fabricado. Gurgel chegou a adquirir todas as máquinas-ferramenta que acabaram não sendo usadas.
Atolada em dívidas e enfraquecida no mercado pela concorrência das multinacionais, a Gurgel pediu concordata em junho de 1993. Houve uma última tentativa de salvar a fábrica em 1994, quando a Gurgel pediu ao governo federal um financiamento de US$ 20 milhões, mas este o foi negado, e a fábrica acabou fechando as portas no final do ano.
Sem dúvida o grande engenheiro João Gurgel deixou seu legado na indústria nacional. Foi um homem à frente do seu tempo, corajoso e patriota que infelizmente não conseguiu suportar sozinho a concorrência das grandes multinacionais.

O sonho Gurgel

Gurgel
Sonhador, visionário, patriota, empreendedor e inovador, Gurgel estendia para os projetos a sua visão de mundo
O engenheiro João Augusto Conrado do Amaral Gurgel morreu em janeiro de 2009, aos 83 anos, depois de mais de uma década prostrado pelo mal de Alzheimer. Gurgel foi o último, talvez o único, pioneiro de uma indústria automobilística de raízes brasileiras. Tão sonhador quanto empreendedor, era personalista, carismático, polêmico e visionário. Construiu o único automóvel 100% nacional, o BR-800, que depois evoluiu para o Supermini. Bem antes da atual moda dos carros com decoração off-road, fez sucesso construindo jipes de fibra de vidro com tração traseira e mecânica VW.
João Gurgel gostava de lembrar a história de seu trabalho de graduação, quando se formou pela Escola Politécnica de São Paulo, em 1949. Segundo ele, ao apresentar o projeto de conclusão de curso através da fabricação de um carro popular adaptado às condições brasileiras, o Tião, teria ouvido de seu orientador: "Gurgel, carro é algo que não se fabrica, carro se compra". Formou-se com o projeto de um guindaste, mas não se convenceu. O engenheiro Gurgel era teimoso.
De sua fábrica, inicialmente em São Paulo, na avenida do Cursino, e depois na cidade de Rio Claro (SP), saíram 40000 carros em quase 25 anos de produção ininterrupta. Exportou para quase todos os países latino-americanos, incluindo Nicarágua, Jamaica e Panamá, e até para a Arábia Saudita. Seus produtos sempre tiveram nomes com forte apelo nacional, de origem indígena, o que reforçava sua aura de nacionalista. Ipanema, Tocantins, Itaipu, Xavante, Carajás: palavras em tupi-guarani. A carroceria de fibra de vidro foi, e é até hoje, um forte apelo de vendas nas regiões litorâneas, mais suscetíveis à ferrugem.
Meu primeiro contato com ele, em 1975, foi chocante. Gurgel queria mostrar a resistência do sistema Plasteel (fibra de vidro em mantas, laminada sobre um chassi monobloco de tubos de aço de seção quadrada), que adotava nos seus jipes – e passou a atacar com um martelo a carroceria dos exemplares estacionados pelo galpão. Marteladas reais, possantes, vibravam na estrutura aparentemente incólume dos pobres automóveis, seguidas por fortes argumentos: "Experimente fazer isso em um carro comum", disse ele.
Depois disso, colocou-me no banco de passageiros de um Xavante e passou a fazer diabruras numa pista semelhante às de motocross que havia nos fundos da empresa. Tudo foi um pouco assustador, mas convincente. Meu primeiro carro foi um Xavante XT azul de 1973, o segundo foi um Xavante X-12 1975, ambos de capota de lona. O primeiro carro zero que comprei foi um Tocantins TR 1991, o último de sua linha de montagem (vendido só no ano passado). Todos proporcionaram belas aventuras, pouca manutenção e as melhores lembranças por quilômetro rodado. Bem, luxo e conforto não eram prioridades, mas capota removível e bom desempenho na lama, sim.
Gurgel começou fabricando minicarros infantis a partir de motores estacionários dois-tempos. Em setembro de 1969 lançou o Ipanema, um bugue de capota de lona com design moderno. Usava motor e suspensão de Kombi, mais reforçada que a do sedã VW. Ao ver que seus clientes o adquiriam para uso em estradas precárias e pela resistência à corrosão da fibra, transformou num jipe. Assim, surgiu em 1973 o Xavante, com desenho bem definido como off-road e pneus lameiros. Algumas versões traziam uma pá retrátil na porta. Todas traziam o estepe sobre o capô. A suspensão traseira já usava o sistema de semieixos com retorno limitado por coxins e cintas, além de molas helicoidais.
Linha de montagem giratória em Rio Claro
Linha de montagem giratória em Rio Claro
Trazia ainda o Selectraction, alavancas de freio de mão que permitiam frear uma e outra roda motriz separadamente, anulando o efeito diferencial. Caso uma das rodas perdesse tração, era possível transferir toda a força para a outra. Simples, mas funcional. O sistema foi aplicado depois nos outros utilitários.
O projeto evoluiu e ganhou novo design em 1974, com o lançamento do Xavante X-10, em linhas bem retilíneas. Gurgel conseguiu colocar o X-10 (e muitas versões subsequentes) no serviço militar e em autarquias e estatais. A ele seguiu-se o Xavante X-12, este sim o modelo de maior sucesso da Gurgel. Mais curto e alto, também oferecia melhor espaço interno.
O X-12 foi a base para o Tocantins, que durou até 1991. Trazia capota alta, bancos em concha com almofadas removíveis, guincho manual frontal (opcional) e maior facilidade de acesso. Ganhou versão de teto rígido, TR, em 1976. Foi adotado pelas Forças Armadas, em busca de um utilitário robusto e ágil. O X-12 passou por pequenas alterações até se transformar em Tocantins, em meados dos anos 80.
Antes disso, em 1974, Gurgel apresentou o Itaipu, nome da então recém-inaugurada maior hidrelétrica do mundo. Começou como um minicarro urbano de dois lugares e evoluiu para uma caminhonete elétrica de design mais avançado que o da VW Kombi. O Itaipu E-400 furgão chegou a equipar frotas de companhias de eletricidade Brasil afora, mas as baterias de então, com muito peso e pouca capacidade de carga, não permitiam uma autonomia satisfatória.
Gurgel chegou a equipar alguns de seus carros com motores a álcool, mas combatia o combustível. Tinha duas linhas de argumentação. A primeira delas eram os subsídios governamentais de então aos produtores do combustível de cana-de-açúcar; a segunda era o argumento de que as terras agriculturáveis devem servir para alimentar pessoas, não automóveis. No auge do Pro-Álcool, fazia apenas carros a gasolina.
Lançou a família X-15, em 1979, com apelo militar. Alto, grandão, o X-15 tinha versões abertas, com capota de lona, picapes e peruas tipo furgão. Usavam o indefectível 1.6 VW a ar e, embora tivessem sido adotados pelo Exército, não encontraram a mesma receptividade entre os consumidores civis.
No fim de 1981 chegou o XEF, sedã de duas portas, com três lugares lado a lado em um só banco largo. Minicarro urbano, tentava rivalizar com o MiniDacon 828, que fazia sucesso com sua forma de ovo entre os endinheirados da época. Caros, ambos estavam fadados ao fim precoce.
O Carajás, o único a adotar motor VW 1.8 de refrigeração líquida, foi lançado em 1984. Era uma espécie de precursor dos SUVs (sport utility vehicles), que tanto sucesso fazem 20 anos depois. Com motor dianteiro e câmbio e tração traseiros, usava soluções originais, como o tubo de transmissão primária, apelidado de Tork Tube, que levava a força do motor ao conjunto embreagem/câmbio traseiro. Com seu pneu sobre o capô e suspensões independentes nas quatro rodas, fez bastante sucesso e teve inclusive versões de luxo.
Gurgel acompanhava o desenvolvimento de seus carros de perto e não raro participava dos testes, como neste com o 280, embrião do BR-800
Gurgel acompanhava o desenvolvimento de seus carros de perto e não raro participava dos testes, como neste com o 280, embrião do BR-800
Gurgel era mesmo teimoso. No dia 7 de setembro de 1987 apresentou o Cena, sigla para Carro Econômico Nacional. Usava projeto mecânico próprio, mas se valia do motor VW a ar. Na prática era um motor de Fusca cortado ao meio: dois cilindros opostos que ofereciam 32 cv a 3 000 rpm. O carro era econômico e atingia 110 km/h. Houve reclamações da família de Ayrton Senna e, no fim, o nome acabou virando BR-800. Foi lançado em 1988 e produzido até 1991.
Foi vendido, inicialmente, com um lote de ações da Gurgel. A propaganda estampava uma foto do engenheiro ao lado de sua criação, com o slogan: "Se Henry Ford o convidasse para ser seu sócio, você não aceitaria?" Cerca de 8 000 clientes aceitaram – e se deram bem, pois em 1989 o BR-800 era vendido com ágio. Ele evoluiu para Supermini, de design mais harmonioso, em 1992. Acossado pelo Uno Mille e sua redução de impostos, começou a perder mercado, até mesmo para o renascido Fusca de Itamar Franco.
Antes disso, em 1990, Gurgel havia apresentado o projeto Delta, que incluía o Motomachine, em diversas versões, com portas transparentes, conversível etc. O Motomachine teve algumas unidades fabricadas, mas o projeto Delta incluía uma nova fábrica no Ceará, que nunca saiu do papel, apesar de ter causado alguma sangria nas finanças da companhia.
O Motomachine foi o menor carro da marca, mas pouquÍssimos foram para as ruas
O Motomachine foi o menor carro da marca, 
mas pouquÍssimos foram para as ruas
Em 1993, endividada, a Gurgel pediu concordata, que resultou em falência em maio de 1994. Com a doença de seu fundador, a marca foi abandonada. Em 2004, o registro do nome da empresa fundada pelo engenheiro João, Gurgel Motores, expirou junto ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial. A marca, incluindo logotipia, foi adquirida pelo empresário Paulo Emílio Lemos, de Presidente Prudente (SP), por 850 reais, segundo Lélis Caldeira, biógrafo de Gurgel. A Gurgel Motores, com logomarca idêntica à original e nenhum vínculo com a idéia original ou a família de Gurgel, dedica-se hoje à importação de triciclos chineses para carga.
O conceito Gran Turismo Articulado foi uma das atrações da marca no Salão do Automóvel de 1981
O conceito Gran Turismo Articulado foi uma das atrações da marca no Salão do Automóvel de 1981
Para o jornalista Lélis Caldeira, 31 anos, autor de Gurgel, um Brasileiro de Fibra (Alaúde, 34,90 reais, 224 págs.), o personagem João Augusto Conrado do Amaral Gurgel foi mesmo "um visionário, um homem à frente de seu tempo". "Resolvi escrever sobre o Gurgelapós uma temporada na Itália. Lá, são apaixonados pelos carros e pelas marcas locais. Pensei: puxa, não temos essa paixão no Brasil? Onde estão as marcas com que poderíamos nos identificar?"

OUSADIA COBROU SEU PREÇO

O Brasil já possuiu uma grande e diversificada indústria de veículos fora-de-série. Floresceu a partir dos anos 1960 e viveu um período de ouro enquanto a importação de carros esteve proibida, entre 1976 e 1990. Formalizada em setembro de 1969, a Gurgel Veículos foi a mais importante fabricante independente com capital integralmente nacional. Seu fundador, o engenheiro mecânico/eletricista João Augusto Conrado do Amaral Gurgel, destacou-se pela ousadia, criatividade e espírito empreendedor.
As primeiras atividades industriais na capital paulista foram muito modestas no início dos anos 1960. Produziu karts (Gurgel Júnior), minicarros para crianças (réplicas de Corvette e Karmann-Ghia) e exibia experiências iniciais com veículos elétricos embrionários. No Salão do Automóvel de 1966, três anos antes de se estabelecer de modo mais bem organizado como indústria, lançou o bugue Ipanema com chassi e mecânica do Fusca. O utilitário leve Xavante XT tornou-se o primeiro sucesso de vendas já em 1970. As linhas lembravam as do Ipanema, mas Gurgel desenvolveu um chassi próprio e engenhoso: tubular de aço, revestido de plástico reforçado com fibra de vidro, sendo este também o material da carroceria.
A robustez do chassi e a impossibilidade de ataque por corrosão logo se tornaram a marca registrada de todos os produtos. Em 1975 inaugurava instalações maiores em Rio Claro, interior de São Paulo, onde começou a série X10 do Xavante. A idéia fixa da tração elétrica permaneceu na cabeça de Gurgel. O Itaipu, de dois lugares, apresentado em 1974, foi o primeiro ensaio que, claro, não deu certo. As tentativas continuaram com a versão E400, a partir de 1980, que acabou se transformando em G800, adotando, porém, o motor VW refrigerado a ar.
Nessa altura a marca oferecia uma linha bastante diversificada, incluindo derivações. Uma delas era o furgão X15 de linhas bem estranhas. Gurgel mostrou uma fase mais criativa ao lançar, em 1984, seu primeiro automóvel urbano, o XEF, para três passageiros numa única fileira. Tinha apenas 3,12 m de comprimento, mas 1,70 m de largura. Não alcançou sucesso por ser caro e incompreendido pelos compradores. No mesmo ano saiu o Carajás, utilitário de maior porte. Pela primeira vez usava motor dianteiro refrigerado a água (VW Santana, 1.800 cm³) e transeixo traseiro, oferecendo espaço interno mais amplo.

Aventura dos minicarros

Como o Carajás também pouco vendeu, o engenheiro, sem abandonar a produção do Xavante, voltou a pensar nos minicarros, agora de baixo custo. Uma antiga idéia chamada Cena — sigla para Carro Econômico Nacional — renasceu com vigor. Gurgel apostou todas as fichas nesse projeto ambicioso e de alto risco. Iniciou incursões no mundo político ao arrancar do presidente da República José Sarney um subsídio escancarado sob medida para seu produto. Outro erro foi lançar um plano de venda pública de ações daGurgel Veículos vinculadas à aquisição do carro.
O engenheiro invocou até o nome de Henry Ford, em publicidade, para atrair “sócios”. Esqueceu que a Indústria Brasileira de Automóveis Presidente — tentativa frustrada de uma fábrica de capital nacional em 1963 — havia fracassado. Entre outras causas, por estudos falhos de viabilidade e esquema acionário mal resolvido. Gurgel decidiu produzir inclusive motor próprio de dois cilindros horizontais (motor VW cortado ao meio), trocando arrefecimento a ar por água.
Na época do lançamento — 1988 — Ayrton Senna conquistou o primeiro título mundial de Fórmula 1. Podia parecer oportunismo vender um modelo identificado pelo mesmo fonema. Negociações de bastidores levaram Gurgel a rebatizar o carro de BR-800, referência ao Brasil e à cilindrada. O pequeno automóvel conseguiu atrair atenções no primeiro ano de comercialização. Os problemas começaram no momento de vender aos não-acionistas. Tudo se agravou a partir de 1990, quando o presidente Fernando Collor baixou o imposto para motores de 1.000 cm³. Em 1992, a empresa, bastante endividada, evoluiu o BR-800 para Supermini, de linhas agradáveis. Era tarde demais. Entrou em concordata no ano seguinte, parou de produzir em 1994 e veio a falir dois anos depois.
O engenheiro Gurgel criou algumas soluções técnicas brilhantes, outras nem tanto. Se tivesse mantido sua especialização nos utilitários talvez sobrevivesse, pois chegou a exportá-los para 40 países. Sempre fez críticas ferozes e infundadas ao programa brasileiro do álcool. A história acabou demonstrando que estava errado. Possivelmente por ter sido mal sucedido na idéia do carro elétrico, atacava a alternativa viável em que se transformou o álcool.
Como industrial e projetista granjeou admiradores. Sua vida inspirou o livro “Gurgel: Um Sonho Forjado em Fibra", de autoria de Lélis Caldeira. Em 2004 o empresário Paulo Campos aproveitou que a marca havia caducado para registrá-la em seu favor. Adquiriu os moldes originais, já apresentou o protótipo de um novo Gurgel e vai comercializar o simpático utilitário com algumas modificações em 2008.
João Gurgel, sofreu do Mal de Alzheimer em grau avançado e não era visto em público há anos.
Veio a falecer em São Paulo no dia 30 de janeiro de 2009.

Gurgel

João Amaral Gurgel era especialista na construção de jipes tendo como base a mecânica Volkswagen, seu sonho era desenvolver um carro popular urbano, de baixo custo e que fosse genuinamente brasileiro. Dentro dessa proposta, em 1988, ele lançou o BR-800, que foi fabricado até 1991.
Gurgel até conseguiu o benefício de uma alíquota diferenciada (mais baixa) de IPI para seus minicarros, só que esbarrou em problemas como alto custo de produção e na concorrência dos modelos “mil”, como o Uno Mille, que surgiu em 1990 e era muito mais avançado e barato. Em seguida veio a falência e a empresa foi vendida em 1994. Em 25 anos de atividade, a Gurgel montou e vendeu cerca de 40 mil veículos de todos os tipos.
O BR-800 tinha motor de dois cilindros contrapostos na horizontal, como o do Fusca (dizem que foi inspirado no do modelo VW), com 800 cm³ de capacidade e 33 cv de potência, desenvolvido pela própria Gurgel. O sistema de freio, câmbio, transmissão e o diferencial eram herdados do antigo Chevette. O carrinho tinha também muitos componentes aproveitados de outros modelos já fora de linha. O chassi era de estrutura tubular metálica (uma espécie de gaiola), revestida com fibra de vidro.
Leve e com apenas 3,19 metros de comprimento, o BR-800 era fácil de manobrar e econômico na área urbana, mas tinha alguns problemas de projeto.
O carro era ruidoso e desconfortável, e os pedais e comandos não eram nada ergonômicos. Na tentativa de fazer um carro barato, aGurgel adotou soluções simplistas demais, como componentes já existentes, suspensão traseira com feixes de molas, eixo-cardã com diferencial e tração traseira, que logo ficariam desatualizados. Algumas falhas de projeto, como as molas da suspensão dianteira banhadas em óleo, e o alternador, que não tinha rotação suficiente para carregar a bateria, foram corrigidas posteriormente.
Em 1990, a Gurgel apresentaria a nova geração do BR-800, chamada de Supermini, mais atraente e moderna que a anterior, que teve três versões (hatch, minivan e utilitário) exibidas no salão de São Paulo, na última participação da marca no evento, se não me engano.
Esses foram os últimos exemplares desenvolvidos por Gurgel. Nunca mais vi esses carros. Uma fábrica do interior de São Paulo arrematou os moldes do jipe Tocantins em um leilão da massa falida da empresa, que ficava em Rio Claro, no interior de São Paulo.
O engenheiro morreu em 30 de janeiro de 2009, mas deixa seu nome na história da indústria automotiva nacional. Seus projetos (alguns deles bem sucedidos), como os jipes Tocantins e Carajás, entre outros, vão ficar para sempre na memória dos brasileiros.

Uma história de fibra

Filha de Gurgel narra a saga do pai, que ousou construir um carro brasileiro puro-sangue
Gurgel
Com a filha Maria Cristina
Meu pai sempre foi extremamente ativo, rápido de raciocínio, um gênio para quem o conheceu. Não criou apenas carros. Tinha projeto de ônibus, helicóptero, barco, kart, fazia parte de um grupo de engenheiros de ponta. Dizia que ia construir uma fábrica de automóveis – e construiu. Dizia que ia fazer um carro totalmente nacional – e fez. Alguns o consideravam invencível, um herói. Mas, pouco tempo depois da falência da fábrica, passou a se desconectar do mundo. Respondia perguntas de maneira truncada, sem muita lógica. Achamos que era sinal de depressão, que estava fugindo dos assuntos que o chateavam. Demorou para associarmos esse comportamento ao Alzheimer.
Hoje, aos 79 anos, meu pai não fala, não anda, não reconhece ninguém, às vezes abre um pouco os olhos, mas fecha em seguida. No começo até atribuímos o aparecimento do distúrbio ao golpe que recebeu. Mas o pai dele teve Alzheimer e dois irmãos mais novos também manifestaram os sintomas. Estava predestinado à doença. A falência foi decretada em 1996 e, a partir de então, a família ficou alijada do processo. Quem cuida disso é o síndico da massa falida. Não faz muito tempo vi um filme que mostrava o interior da fábrica (Gurgel e o Carro do Brasil, dirigido por Caio Cavechini) e deu vontade de chorar. Tem peças jogadas, vidros quebrados, poças d’água.
O lugar era muito organizado, não havia sujeira no chão. Antes de sair, os funcionários limpavam tudo. Era uma loja. O que sobrou? Ferro-velho. O que tem para leiloar é isso, apenas sucata. (A Gurgel Motores foi inauguradaem 1975 às margens da Rodovia Washington Luís, em Rio Claro, a 175 quilômetros da capital. João Augusto Conrado do Amaral Gurgel pensou longe ao escolher esses quase 15 alqueires de terra. Alémda estrada em frente da fábrica, há outra logo atrás, que escoaria a produção para o Rio Tietê, numa futura desova pluvial. E entre uma e outra passa uma ferrovia. Em 21 anos de ativa, a Gurgel colocou no mercado 40 mil veículos. Passados quase nove anos da falência, resta pouco dos e nos cinco barracões: carcaças do Supermini sobre um carrossel, portas do X-12 num canto, moldes sem fibra, pranchetas empoeiradas, mato alto, pernilongos,um quadro-negro escrito “Thiau (sic), Gurgel do meu coração. Um forte abraço. Fim”. O preposto do síndico da massa falida, Jaime Marangoni, lembra que muitas peças foram roubadas e fica difícil vender o que sobrou no varejo porque o material que compõe os carros é assim, fácil de recuperar. “Se arrebentar uma porta do carro, o cara despeja uma mistura de resina com fibra de vidro em cima e pronto, está nova.” E o que arrebentou a empresa? “Acho que foram vários fatores, desde os salários atrasados até os empréstimos que não saíram. O Gurgel foi um engenheiro exemplar, mas um administrador pecável.”)
Meu pai demorou muito tempo para admitir a gravidade da história. Como nunca tinha falhado na vida, não achou que seria dessa vez. É de uma geração que não divide angústias. Ele não iria chegar para os três filhos e dizer que estava preocupado. Na época da concordata, eu estava na França. Lá soube que a CUT tinha quebrado tudo quando meu pai atrasou os salários. Era a época do movimento sindical brutal e todas as empresas automobilísticas sofreram com isso. São Bernardo do Campo até hoje não se recuperou de tanta greve.
Acho que eles não têm noção do que isso significou para a Gurgel, para o país, para os funcionários. Recuperar todo aquele patrimônio não era brincadeira. (De tanto se envolver com a fábrica, Luiz Bortolin virou Luiz da Gurgel. Trabalhou na empresa de 1983 a 1996 como encarregado da venda de peças e, depois disso, passou a ajudar na administração da massa falida. Chegou a ser vigia diurno da empresa, mas abandonou o posto quando encontrou os dois guardas da noite mortos por ladrões. Antes da concordata, tinha uma relação distante com o patrão, depois chegou a vê-lo chorar diante das dívidas. Gurgel pagou os funcionários em dia até dezembro de 1992. Faltou metade do décimo terceiro. Pulou janeiro do ano seguinte. Logo o sindicato acampou na porta da fábrica, fez piquete, mas, segundo Luiz, não passou disso. “Que eu saiba, não quebraram nada.” Ele diz que Gurgel tinha aversão à CUT , tanto que só empregava os que comprovassem não ter nenhum vínculo sindical. Na época, ele baseava o pagamento dos salários em UBS, Unidade Básica de Salário – foi um dos primeiros empresários do País a fazer uma correção mensal. Anunciou que ficaria em dia com os funcionários em setembro daquele ano, depois em dezembro, depois... “Hoje a dívida com os empregados bate os R$ 28 milhões”, contabiliza Luiz. Eles têm prioridade numa possível venda dos imóveis da Gurgel e Rio Claro conta com uma injeção de ânimo no mercado local a partir de então. Enquanto isso, pouco se fala a respeito. “É como se a cidade tivesse vergonha do acontecido”, supõe. Do patrão guarda a lembrança de um homem de idéias grandes, que encampou a produção nacional de carro, mas se descapitalizou quando decidiu montar uma fábrica no Ceará.)
A Gurgel trabalhava em nichos de mercado porque era muito complicado concorrer com os grandes. Num primeiro momento, meu pai investiu em carros que venciam terrenos difíceis e não eram corroídos pela maresia. Por isso tem muito jipe da Gurgel no Nordeste, na Amazônia, no Caribe. Ele usava o motor da Volkswagen e uma estrutura super-resistente chamada plasteel, desenvolvida pela Gurgel. O Exército e a Aeronáutica compraram vários modelos de jipe. Lembro do meu pai bolando um que pudesse ser jogado de um avião com pára-quedas. Mais tarde investiu noItaipu,umautomóvel elétrico, que recarregava em qualquer tomada 220. Então surgiu a idéia do carro econômico. Com a crise do petróleo e o incentivo ao Proálcool, poucas pessoas tinham condição de fazer a conversão e o povo só conseguia comprar carros usados que consumiam 3 a 4 litros por quilômetro. A Gurgel desenvolveu o BR-800,BR de Brasil e 800 de cilindradas em motor de dois cilindros opostos, refrigerado a água, que fazia 15 quilômetros por litro. Com esse projeto, meu pai reivindicou e conseguiu do governo o IPI reduzido para carro econômico. Foi uma chiadeira geral das montadoras grandes. Até que a Fiat pegou uma carona na proposta e fez o seu 1.0, que estourou no mercado. Atrás vieram outras. Tenho orgulho de dizer que, se temos carro econômico hoje, foi por causa da iniciativa do meu pai. Em busca de um novo nicho, ele achou que valia a pena construir uma fábrica no Ceará. Custava quase 30% a mais para levar os carros até lá de caminhão por estradas ruins. Comprou um terreno de 650 mil metros quadrados em Eusébio, nos arredores de Fortaleza, e pensou em construir ali uma unidade para fabricar câmbios e diferenciais e outra para montar carros populares e econômicos, o chamado projeto Delta.
Em 1991, os governos do Ceará e de São Paulo assinaramumprotocolo de intenções apoiando o projeto e meu pai passou a investir pesado nisso. Começou a sacar dinheiro, cerca de US$ 3 milhões, tendo os dois governos como avalistas. Aí, de repente, passaram a não atendê-lo mais dizendo que devia exatamente US$ 3 milhões. Ciro Gomes e Fleury desistiram do projeto ao mesmo tempo. Por que avalizaram se não tinham a intenção de entrar como sócios? Meu pai não tinha como produzir o carro porque nem sequer tinha acabado de construir a fábrica. Então quebrou. (Procurado, Ciro Gomes, atualmente ministro da Integração Nacional, mandou este e-mail: “No governo anterior ao meu, a Gurgel manifestou interesse de instalar, em Fortaleza, uma unidade industrial para produzir automóveis. Neste sentido foi celebrado um acordo entre a Gurgel e o governo do Estado do Ceará. O primeiro passo da Gurgel foi o de obter, comorealmente obteve, um empréstimo equivalente a US$ 5 milhões junto ao Banco do Nordeste do Brasil (BNB), tendo o Banco do Estado do Ceará (BEC) comoavalista. A Gurgel não honrou o empréstimo, razão pela qual, quando eu assumi o governo cearense, o BECestava amargandoumprejuízo equivalente a US$ 5 milhões. A Gurgel solicitou mais recursos financeiros do Estado do Ceará para implementar seu projeto. Diante da inadimplência da Gurgel e das conseqüências que ela causou aoBEC,eu não podia atender à solicitação. E não atendi”.) A partir do momento em que meu pai passou a fabricar ummotor próprio, começou a ser bombardeado de uma maneira impressionante. Avisaram que isso aconteceria. Também brigou com o pessoal do Proálcool porque achava que o campo deveria produzir comida, não combustível. Mais pressão. Talvez lhe faltasse habilidade política. Teria de ceder à corrupção, ou seja, dar 10% aqui, 20% ali, mas não queria essa moeda de negociação para o resto da vida. Sempre foi muito crítico, sempre gostou de desafiar as pessoas, como fez com o professor de faculdade dele. Chegou um momento em que não deu mais. Mas os carros continuam por aí, e vira e mexe pareio com um deles querendo comprar um modelo bem-conservado.
(A passagem com o professor de faculdade, que ficou famosa, quase folclórica, é a seguinte: ao apresentar o trabalho de conclusão do curso de Engenharia Mecânica- Eletricista na USP, João Augusto Conrado do Amaral Gurgel burlou as regras. Em vez do tradicional projeto de guindaste, levou a público o Tião, o primeiro automóvel genuinamente brasileiro. Diante da farfalhante gargalhada dos demais alunos, ouviu do professor que carro, no Brasil, não se faz, se compra. Ele varou a noite para garantir o diploma com um guindaste. E varou a vida atrás do projeto de um carro 100% BRASILEIRO.)























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